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Memória, trauma e legado das ditaduras no Cone Sul: debatendo livros

By 1 septiembre, 2019julio 28th, 2021No Comments

Seminário Internacional 40 anos de Anistia

“Entre testemunhos, arquivos e urgência da organização estratégica do pessimismo. Comentários sobre os livros, especialmente o de Fabiana Rousseaux”

Márcio Seligmann-Silva* (IEL-Unicamp)

 

Fabiana Rousseaux (TecMe-Argentina):Territorios, Escrituras y Destinos de la memoria (comp). (Editora Tren en movimiento, 2019)

Desirée de Lemos Azevedo (Unifesp): Ausências incorporadas: etnografia entre familiares de mortos e desaparecidos políticos no Brasil. (Editora Unifesp, 2018)

Liliana Sanjurjo: Sangue, identidade e verdade: memórias sobre o passado ditatorial na Argentina. (Editora Ufscar, 2018) Danielle Tega (Unicamp): Tempos de dizer, tempos de escutar: testemunhos de mulheres no Brasil e na Argentina. (Editora Intermeios, 2019)

 

Walter Benjamin desde seu ensaio sobre o surrealismo, de 1929, esteve ocupado com um projeto de: “Mobilizar para a revolução as energias da embriaguez”. Tratava-se daquilo que ele denominou de  “organização do pessimismo”. Nada mais atual. A tarefa que ele se colocava era a de alterar radicalmente a relação entre a política e a moral a partir dessa mobilização. Benjamin adere ao que ele acredita ser a alternativa dada pelos surrealistas em consonância com o comunismo. Nessa visão, em oposição ao otimismo burguês da social-democracia e ao “arcabouço imagético” dos seus poetas, prega-se um pessimismo de princípio como guia para a mudança. E sobretudo: trata-se de uma clara consciência de que o único “avanço” alcançável no atual modelo capitalista é o da técnica que leva à destruição. Também essa ideia é luminar hoje, nesses tempos de nuvens negras. Para organizar o pessimismo seria necessário “simplesmente extirpar a metáfora moral da esfera da política, e descobrir no espaço da ação política o espaço completo da imagem [den hundertprozentigen Bildraum].” (2012: 34) Ou seja, tratava-se e trata-se, ontem como hoje, de reconhecer na política voltada para o moralismo, para a “luta contra os corruptos”, para a higiene que eliminaria os “comunistas”, a mais clara expressão do fascismo.

Benjamin formula aqui o embrião de uma técnica do artista que consiste em extrair da ação um novo e poderoso espaço de imagem, Bildraum correspondente a um mundo “em sua atualidade completa e multifacetada” que leva a uma destruição da imagem do indivíduo. Ele denomina esse processo de “destruição dialética”. É essa destruição mesma que garante o novo espaço de imagem, Bildraum, que ele descreve de modo mais concreto como um “espaço de corpo”, Leibraum, que também tem um sentido coletivo nesse autor: “Também o coletivo é corpóreo”. (2012: 35) Assim, ele reivindica um novo materialismo antropológico, inspirado nos surrealistas e descendente de autores queridos seus, como Hebel, Georg Büchner, Nietzsche e Rimbaud. Nesse materialismo é o espaço da imagem que permite uma ação efetiva no presente. Como produzir a destruição dialética das falsas totalidades através de obras que apresentem o presente “em sua atualidade completa e multifacetada”? Como extirpar a metáfora moral da esfera política? Trata-se de uma guerra de imagens que incidem sobre nossos corpos e os dominam. Saber organizar o pessimismo construindo um outro campo imagético como espaço corpóreo é uma das tarefas principais da cultura hoje. Ela se tornou espaço de resistência – e por isso está sendo, como à época de Benjamin, perseguida e tentativamente calada e destruída.

Nesta mesa tenho a honra de estar ao lado de quatro autoras latino-americanas que, como suas obras aqui apresentadas o demonstram de modo claro, fazem parte dessa luta pela construção de um espaço de imagem crítico que se articula a favor de uma ação transformadora. A atualidade multifacetada surge aqui como um conjunto de escritas que articulam capítulos da história da violência deste Continente. Essas obras focam nos momentos ditatoriais que a Argentina e o Brasil viveram respectivamente entre 1976-1983 e 1964-1985. As três brasileiras escreveram seus livro a partir de teses de doutorado defendidas no Instituto de Filosofia e Ciências Humanas da UNICAMP. Danielle Tega se doutorou em 2015 em Sociologia. Desirée Lemos Azevedo defendeu sua tese em 2016 na área de Antropologia Social. Liliana Sanjurjo defendera sua tese no mesmo Programa em 2013. Já o livro de Fabiana Rousseaux (que ela organizou ao lado de Stella Segado), foi publicado em 2018 e, com exceção do quinto capítulo, tem sua origem na jornada internacional “Territorios, escrituras y destinos de la memoria”, que aconteceu no Centro Cultural de la Cooperación, em Buenos Aires em março de 2017.

Neste momento que lembramos no Brasil os 40 anos da lei de Anistia, essas obras são da maior importância por se inscreverem justamente à contrapelo de novas e poderosas ondas revisionistas e negacionistas que se articulam na Argentina, desde 2015 e, no Brasil, sobretudo desde o ano passado e neste ano. A sequência de golpes, um legislativo o outro jurídico, que levaram o atual mandatário ao poder nesse país, tiveram como sua pedra de toque esse revisionismo negacionista. Essa pedra foi lançada como base de campanha já no dia 11 de abril de 2016, data da votação do impeachment na Câmara do Deputados, com o fatídico voto que teve por patrono um torturador. A Anistia, nunca é demais lembrar, é uma figura jurídico-política complexa e ambígua. Bandeira de luta por parte de militantes de oposição durante o período da ditadura no Brasil, ela foi transformada em factoide jurídico que viria a justificar (de modo autoritário e alheio à Carta Magna de 1988 e a tratados Internacionais) o bloqueio de todo e qualquer processo jurídico contra os algozes. No Brasil, de modo excepcional no contexto de outros países latino-americanos que passaram por ditaduras naquela ocasião, a Anistia foi associada a um bloqueio do campo jurídico. Trata-se, é claro, de um bloqueio político, de certo modo metajurídico, uma vez que, sobretudo desde que vivemos sob a égide da Constituição de 1988, nada justifica essa associação entre Anistia e suspensão de direitos inalienáveis, indivisíveis e universais, como o são os direitos à verdade, à memória e à justiça. O estado de exceção, que é radicalizado nos momentos em que o país vive uma ditadura, quando efetivamente se declara um estado de sítio e se suspende o habeas corpus, é mantido no Brasil na área dos DDHH mesmo após o fim oficial da ditadura, uma vez que no campo da memória, predomina quer a amnésia, quer o edulcorar de período ditatorial; no campo da verdade, a nossa Comissão Nacional da Verdade não teve a força necessária para se impor e efetivamente aprofundar mais a verdade sobre aquele período e, por fim, no campo jurídico tampouco se suspendeu o estado de exceção no que tange ao período da ditadura. Corpos ainda estão desaparecidos; processos não se dão; criminosos, terroristas de estado estão livres e são alçados à categoria de modelos morais.

Contra essa política do esquecimento, e no contexto dessa guerra de imagens, que infelizmente, no Brasil, até agora foi vencida pelos algozes e seus associados, temos esses preciosos livros que se somam a uma importante bibliografia sobre esse período e sobre a sua memória. O foco das três obras vindas do IFCH é a memória, sobretudo a memória testemunhal: Desirée se volta para a etnografia com os familiares de mortos e desaparecidos no Brasil, analisando a construção dessa categoria social de familiares, suas narrativas e performances de grupo. Liliana debruça-se, especificamente no caso argentino, sobre a relação entre identidade biológica e identidade política, notando como a partir do caso dos filhos de desaparecidos o DNA se torna uma poderosa instituição do político e da política. Já Daniella tem um recorte que une estudos de testemunho da ditadura com estudos de gênero: ela analisa as narrativas de mulheres no Brasil e na Argentina no contexto das lutas pelos direitos humanos.

Sabemos que o Brasil é um país onde os direitos humanos não se impuseram como parte da política de Estado. Aqui políticos no poder falam de modo abominável de “direitos humanos para humanos direitos”, lema este que poderia estar inscrito na portada de qualquer campo de extermínio, mas nunca poderia ser usado como mote em um país supostamente democrático e que vive sob a égide do estado de direito. Lamentavelmente esses mesmos políticos estão de fato transformando o país em um campo de extermínio: de mulheres, de LGBTs, de pobres, de jornalistas, de pessoas engajadas nas lutas pelos direitos humanos, de aposentados, de negros, de favelados etc. Portanto, Desirée e Danielle, que tratam da memória da ditadura neste país, têm de lidar com o fato de que essa memória e as lutas por justiça e verdade tendem a ser agenciadas sobretudo e quase que exclusivamente por familiares de mortos e desaparecidos ao lado de sobreviventes. Ou seja, sem a ruptura do estado de exceção na memória e na justiça, dá-se esse enclausuramento da luta pelos direitos em uma campânula. Como enfatiza Danielle, o testemunho necessita de ouvidos para ocorrer. Sem uma esfera pública aberta ao evento testemunhal, o testemunho não se dá de modo integral. A violência ditatorial, no Brasil, extrapola o período ditatorial, pois ela se faz valer até hoje, 40 anos após a Anistia e 34 anos após o final oficial da ditadura. Essa violência não é “apenas” simbólica e jurídica, pois o fato das práticas de tortura e de desaparecimento continuarem a persistir aqui também está associado à ausência de elaboração simbólica e jurídica dos crimes daquele período. Hoje, no campo simbólico brasileiro, as vítimas do terror de estado estão sendo chamadas de “terroristas”. Os torturadores, que realizaram o terrorismo de estado, estão sendo chamados de salvadores da pátria. Mais do que nunca nossa tarefa de estabelecer a verdade sobre esse passado se mostra como urgente. Tudo o que fizemos até hoje nesse campo foi insuficiente.

Nesse sentido permito-me agora concentrar na leitura do interessantíssimo livro co-organizado por Fabiana, “Territorios, Escrituras y Destinos de la memoria”. Essa obra é interessante justamente pelo encontro nela das urgências derivadas do neoliberalismo radical que vivemos hoje, ao lado da tarefa de rememoração, de justiça e verdade com relação ao período da ditadura. Para nós brasileiros é muito importante esse confronto com a experiência bastante diversa de nossos vizinhos, especialmente com a paradigmática experiência argentina. Nós muitas vezes invejamos até os seus problemas… Pois, se eles, desde 2015, sofrem com um governo que dá eco a ideias revisionistas, esse governo, por sua vez, tem de enfrentar uma sociedade eivada de cultura da memória, em cujas cidades memoriais e espaços de recordação criaram uma cultura dos direitos humanos, que só podemos olhar com admiração. Mas, por outro lado, o desafio neoliberal, sua necropolítica, sua política da amnésia quando se trata dos crimes contra a humanidade, é o deles e é o nosso também. Assim, Jorge Alemán no seu prólogo a esse livro recorda que nossos estados neoliberais implantam uma política de morte que entroniza o esquecimento matando as populações duas vezes, eliminando-as e apagando suas histórias. Os “dispositivos neoliberais de produção de subjetividade” são totalmente alheios à lógica do testemunho, ao double bind de sua necessidade e impossibilidade de inscrição. Ao invés das imagens precárias típicas da inscrição testemunhal do terror, o sistema reduz tudo a números. A operação seguinte é negar esses próprios números. Mas Jorge destaca também o local excepcional do qual a Argentina parte nessa que eu gostaria de chamar agora de era de negacionismos. Ela deu lugar a um “sujeito político sem precedentes” a partir das lutas pelos direitos humanos.

Para pensar essa memória e o testemunho na era neoliberal as organizadoras enfatizam na abertura do livro que ele leva a marca da interdisciplinaridade: elas procuraram fazer um trabalho “entre as dimensões confluentes do testemunho e dos arquivos, no seu cruzamento interdiscursivo com a psicanálise, as políticas públicas de memória, a antropologia, a arquivística, a teoria crítica, o direito, as manifestações artísticas, entre outras.”

Na abertura do primeiro capítulo, “Território da palavra. O sacro e a ética do silêncio”, Silvia Delfino já coloca o desafio de se pensar o testemunho, o território da palavra, os “modos como a topologia do terror se imprime no corpo”, em meio às “lutas coletivas de resistência contra o silenciamento, e, de modo correlato, nas lutas pelo ato de testemunhar.” Ela destaca nesse sentido o trabalho do Centro de Assistência às Vítimas de Violações de Direitos Humanos “Dr. Fernando Ulloa” da Secretaria de Direitos Humanos do Ministério da Justiça, que teve como diretora entre 2010 e 2014 Fabiana Rousseaux. O trabalho desse centro extrapolou o delicado cuidado das vítimas de delitos de lesa humanidade, na medida em que percebeu a relação desse trabalho com os processos desencadeados no campo jurídico e, mais além, articulando-o à “imperiosa necessidade de instalar um debate público acerca das consequências do terror de Estado não como fatos do passado, nem como um problema das vítimas, mas como de toda a sociedade presente.” É justamente esse passo que se faz necessário no Brasil até hoje, já que, pese a importância da Clínica do Testemunho entre nós, não pudemos dar esses outros dois passos em direção à articulação com as lutas no campo jurídico e na implementação de um debate generalizado na sociedade sobre o tema dos DDHH. Passou-se, nessa clínica dirigida por Fabiana, da narrativa que auxiliou na reestruturação de vidas, para a construção de uma memória coletiva de uma experiência compartilhada. Nesse sentido, a psicanálise pôde contribuir na construção de uma sociedade mais calcada nos direitos humanos, derivada da consciência da coparticipação da experiência das vítimas. O testemunho psicanalítico também se enredou ao testemunho jurídico, impondo uma pluralidade de narrativas ao invés das versões singulares e monolíticas prenhes de esquecimentos.

Fabiana no seu ensaio “30.000? Ni idea! El Estado y lo sacro”, parte do fato de que um objeto até então tratado como sagrado, os direitos humanos, estava sendo tocado pelo Estado e, portanto, violado. Não podemos esquecer que o Governo Macri iniciara em dezembro de 2015. Em agosto do ano seguinte o presidente afirmou em uma entrevista: “Não tenho ideia, não sei se […] foram 9.000 ou 30.000 ou os que estão anotados no muro”, em uma referência ao número de mortos e desaparecidos na ditadura de 1976-83 e ao muro com a inscrição com os nomes dessas vítimas, no Parque de la Memoria em Buenos Aires (que inclui também vítimas do período de 1969 a 1976). Fabiana percebe que se dava então algo novo. Se o sagrado está associado ao estabelecimento de fronteiras em torno do intocável, esse intocável fôra então ameaçado e, ela escreve, “quem toca as bordas [do sagrado] se torna obsceno.” O violador da proibição se torna ele mesmo portador de uma mácula. “O governo argentino atual”, ela escreveu, “deu mostras de sobra quanto ao fato de estar disposto a tocar o nó da dor traumática inscrita no tecido social.” O Governo retomava o discurso dos “dois demônios” rebaixando as vítimas e incriminando-as. A semelhança com o que se passou no Brasil em 2018/19 é clara. Governos neoliberais radicais implantam uma necropolítica que se volta contra o passado, o presente e tolhe o futuro. Mas no caso argentino o tema dos desaparecidos alcançou um patamar distinto. Esse termo, como escreve Fabiana, “fundou uma ‘neológica’ derivada de uma nova retórica social construída pelas e pelos sobreviventes, pelas Madres e Abuelas da Plaza de Mayo.” Desaparecidos tornou-se uma nova categoria, paradoxalmente, “converte-se em uma presença plena”. O governo de Nestor Kirchner não apenas possibilitou levar adiante os processos jurídicos, como, nesse contexto, deu uma dignidade ao testemunho nunca antes alcançada. O palavra testemunhal foi reconhecida em seu “estatuto de verdade”. Essa palavra também sustentou a criação de um Sujeito político dos direitos humanos. Nesse campo aberto pela palavra testemunhal as experiências traumáticas puderam ser elaboradas. A representação dos delitos de lesa humanidade foi tornando-se possível. A tradução do que parecia intraduzível, foi se dando. No período de Ménem as primeiras leis de reparação ainda deixavam as vítimas sob suspeita. Elas tinham que trazer as provas do delito – como até pouco tempo era o caso no sistema brasileiro de reparação, ao menos enquanto funcionou. A partir de 2006 ocorreram na Argentina mais de 180 julgamentos envolvendo a responsabilidade do Estado nos crimes lesa humanidade. Nesse contexto surge uma cultura dos direitos humanos que penetra as ações de Estado. Mas com Macri ocorre uma reversão desse processo. Ao por em questão o número de vítimas, ele realçou a sua atitude revisionista e negacionista. A burocracia de Estado inicia um processo de criminalização das vítimas. Faz-se alusão a supostas somas avultantes pagas como indenização; fala-se em “curral dos direitos humanos”. Essa verdadeira avalanche de ataques à cultura dos direitos humanos se deu, no entanto, em um país que construíra novos sujeitos políticos calcados na experiência coletiva da rememoração e da luta pela verdade e justiça. Fabiana nota que diferentemente do Brasil, pese nossa CNV e a Comissão de Anistia, na Argentina desenvolveu-se “a ideia de um sujeito político derivado de modo direto do campo dos direitos humanos e articulado fortemente com as políticas de Estado.”

A autora destaca o papel da criação em 2006 do “Plano Nacional de Acompanhamento a Testemunhas e Querelantes vítimas do Terrorismo de Estado”. A testemunha passa a ser vista como uma figura chave na sociedade. Ao contrário do paradigma jurídico-historiográfico da testemunha como portadora “objetiva” (no sentido positivista do termo) da realidade, a sociedade teria se aberto para a verdade do elemento subjetivo do testemunho: as suas faltas, os esquecimentos, os atos falhos, como na psicanalise, são reconhecidos como momentos de verdade, de uma certa lucidez a pesar de tudo. A reparação atingiu assim um novo significado. Ela mudou os conceitos de memória, justiça e verdade, na medida em que aceitou os sujeitos políticos como sujeitos de linguagem pelos quais o inconsciente se manifesta. Muito além da impossível monetarização da dor, tratou-se de construir uma política da dor calcada na ética e na dignidade. As testemunhas enunciavam o que ocorrera a um “nós” construído no próprio ato testemunhal. Não se tratava mais da impossível factografia positivista, mas sim de dar voz a uma sociedade marcada por milhares de desaparições, por apropriações, por “corpos vivos com identidades falsificadas e corpos mortos insepultos”.

A partir de 2015, no entanto, o espaço político governamental passa a tentar reverter essa situação de enlace entre as lutas individuais, coletivas e a política de Estado. Como assistimos hoje no Brasil, também no país vizinho procurou-se vitimizar os perpetradores que passaram a ser pintados como os “perseguidos”. Procura-se construir uma nova categoria de vítima, como fica claro, lembra Fabiana, na nova edição de 2016 do Nunca más. O secretario de Direitos Humanos disse que a nova edição procurava eliminar o teor político e ideológico das outras edições. Fabiana comenta: “Ao desligar as políticas de Estado e as políticas de direitos humanos da Política, instaura-se a ideia de vítimas a-políticas.” Mais do que isso, trilha-se o caminho da quantificação, da abordagem meramente positivista dos crimes de Estado. Tudo passa para o campo das provas – abandona-se o testemunho.

Com razão Fabiana destaca a importância simbólica e política do número 30.000. “Em nosso país ‘os 30.000’ refletem não apenas o ‘nome’ da desaparição e do extermínio, mas antes e sobretudo a clandestinização dos crimes cometidos. Essa cifra implica a nível simbólico muitas coisas e mais que um número, estamos diante de um in-número, ou seja, daquilo que não pode ser reduzido a um fato contável. […] significa que a desaparição (não a morte, mas a desaparição) não é passível de ser medida. Não podemos medir a desaparição de pessoas se a morte foi abolida e ainda não podemos ‘escrever-la’. É um impossível.” Também o ex prisioneiro, ex desaparecido, faz parte dessa cifra, afinal, “se é um ex desaparecido, como definir essa temporalidade? Existe uma temporalidade para essa experiência?”, pergunta-se Fabiana.

Juan Besse propõe em sua contribuição ao volume analisar a singularidade das políticas da memória e dos DDHH na Argentina. Resumindo esse rico texto, destaco como Besse articula a passagem da utilização política da categoria de parentesco, apropriada e transformada pelos movimentos sociais, à construção de uma política de direitos humanos alimentada por ativistas que se tornaram profissionais nessa área, produzindo conecções internacionais e dando forma ao Estado. É claro, como ele nota, que o duplo fracasso da ditadura argentina, militar nas Malvina, e econômico, também está na origem desse diferencial. O fato de se ter optado, nos julgamentos de crimes contra a humanidade por tribunais não especiais, permitiu se instaurar na sociedade o modelo de uma justiça aberta a todos. Por outro lado, a forte presença do trabalho de memória associado à prática política, Besse analisa como um fruto do peronismo, cujo modo de fazer política se dá no vértice entre o sagrado e a memorialização. Ele vê no peronismo um tipo específico de política aberto ao testemunho. Essa abertura, claro, ele não deixa de ver também presente em uma sociedade na qual os debates culturais e cujas controvérsias políticas são amplamente discutidas dentro da linguagem psicanalítica. Assim, podemos falar no caso argentino de um política da psicanálise, disciplina essa que desde Freud se dispõe a pensar a questão da filiação, da herança simbólica, e, claro, da perlaboração dos traumas e que propõe a imagem do sujeito não mais como o arrogante homo faber, mas sim como um sujeito precário, carente do outro e que se articula por sua fala recortada.

Alejandro Kaufman traz uma ideia de extrema atualidade em sua discussão sobre a atualidade do Nunca más. Ele se pergunta o que significa essa tendência hoje, nesta época de negacionismos, de se falar em “disputas” no campo da memória. Quais seriam os sujeitos dessa disputa? Ela se daria entre testemunhas e sobreviventes, ou com os perpetradores? Ele considera, portanto, o termo “disputa” pernicioso para o campo da memória. Já na figura do “nunca más” ele lê um contato com o sagrado, vê uma ruptura, uma descontinuidade absoluta, que passa a integrar a sociedade como uma espécie de cena sem imagem.

Impossível resumir aqui os demais textos e debates dessa obra essencial. Victoria Basualdo, por exemplo, traz o tema extremamente atual da participação de empresários e da utilização de estruturas de empresas durante a ditadura argentina. Esse ponto é central, para se mostrar que as ditaduras com sua violência genocidaria, seu desejo de submissão dos trabalhadores e de redução do trabalho à categoria do trabalho escravo, está diretamente ligada a projetos económico-políticos. As ditaduras são órgãos da biopolítica. Tenho citado frequentemente nos últimos meses e volto a citar a frase de Robert Antelme, escrita em 1948, e que me parece essencial para esclarecer esse compromisso entre as ditaduras e os empresários. Em seu artigo “Pobre – proletário – deportado”, ele cunhou: “quando o pobre torna-se proletário, o rico torna-se SS.”

Eduardo Molinari articula políticas de DDHH, ambientalismo e artivismo. Ele conclama de modo muito atual: “Não haverá justiça social sem justiça espacial e justiça ambiental.” Natalia Federman analisa a construção da figura do inimigo interno, que volta a ser central nas políticas de estado neoliberais fascistas. Hoje a relação entre capital e morte exige o sacrifício desses “inimigos”. Ileana Arduino destaca justamente dois alvos dessa necroplítica: os jovens e os migrantes. A precarização como parte da política de Estado leva à substituição do estado social pelo estado repressivo que funciona pelas políticas do medo. Ela destaca também como as políticas de segurança estabelecem uma política punitiva, uma verdadeira geopolítica do extermínio. No Brasil, vale lembrar, não só nossas favelas e periferias são parte dessa geopolítica (lembremos de Temer ocupando as “comunidades” do Rio com tropas do exército), mas também populações indígenas e ribeirinhas, que, não por acaso, são também as maiores vítimas dos crimes socioambientais. A política transforma-se, com base no fascismo territorial, em guerra de extermínio. A política de combate às drogas revela-se como política de assassinato das populações pobres, negras e precarizadas. O governador do Rio que o diga. Coincidentemente ou não, as leis antiterrorismo da Argentina e do Brasil são da mesma época, de 2016. Lá como aqui, criminaliza-se a população excluída do neoliberalismo na mesma medida em que se desmonta as redes de controle da criminalidade no campo financeiro. Por fim, após todo um capítulo com contribuições generosas sobre o local do cinema na construção da cultura da memória na Argentina, o capítulo quinto apresenta um debate em torno do tema da mudança de nome de filhos de genocidas que decidiram romper os laços com seus genitores. Esse gesto permite a ruptura com um laço natural de filiação e a instituição de uma série de novos laços, de responsabilidades, erigidos a partir de escolhas políticas e vitais. Aqui, novamente, encontramos nesse precioso livro temas de ordem biopolítica que apontam para a radicalidade da cultura dos DDHH de nossos vizinhos. Como no livro de Liliana, biologia, filiação e parentesco são modelados e repensados por políticas da memória. Um enorme campo se abre para a teoria política.

Concluo então esse comentários aos preciosas e urgentes livros de Fabiana, Liliana, Danielle e Desirée lembrando da epígrafe do livro de Danielle. Trata-se de uma passagem de Eduardo Galeano sobre a força elocutória do testemunho. Essa imagem, como tantas outras colecionadas e apresentadas por essas autoras, agrega-se a um contra-arquivo de resistência ao fascismo na organização crítica do pessimismo que aos poucos seguimos construindo:

Quando é verdadeira, quando nasce da necessidade de dizer, ninguém consegue parar a voz humana. Se a negam a boca, ela fala pelas mãos, ou pelos olhos, ou pelos poros, ou por onde for. Porque todos, todinhos, temos algo a dizer aos demais, alguma coisa que merece ser celebrada ou perdoada pelos demais.


* Prof. Dr. Márcio Seligmann-Silva. Professor titular de Teoria Literária, Instituto de Estudos da Linguagem, IEL Universidade Estadual de Campinas, UNICAMP.


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