Por Leila Ripoll
– psicanalista, membro do EBEP – Espaço Brasileiro de Estudos Psicanalíticos/RJ, membro do PUD – Psicanalistas Unidos pela Democracia
É com imensa alegria e orgulho que represento o PUD nessa mesa de retomada das nossas atividades presenciais, depois desse longo período de afastamento imposto pela pandemia. Resistimos, bravamente, nos Zooms, mas há uma vibração nesse encontro de corpos que é inestimável e insubstituível!
Gostaria de agradecer, em primeiro lugar, aos colegas presentes que sustentaram esse desafio de estarmos novamente aqui na ASA. Muito obrigada pela solidariedade e por continuarmos seguindo juntos. Agradeço à ASA, na pessoa da amável Karine que nos acolheu tão gentilmente. Agradeço também aos colegas da Frente do PUD pelas inúmeras manhãs de sábado em que lutamos para nos mantermos ativos e unidos, trabalhando durante esse período tenebroso e produzindo, entre outras coisas, a nossa Carta de Princípios, intensamente discutida, com abertura e franqueza. Essa atuação coletiva dos psicanalistas é algo novo e promissor!
Finalmente, agradeço muitíssimo aos componentes da mesa pela disponibilidade em participar, trazendo as suas valiosas contribuições para o debate.
Não precisamos falar sobre como se materializa a tragédia brasileira, estamos todos vivendo na carne essa tragédia, ainda que seus efeitos sejam muito desigualmente distribuídos e ocupemos um lugar privilegiado nessa cena.
Inicialmente, havíamos pensado como tema desse evento a questão da impunidade das ações do governo ao produzir essas tragédias, focaríamos basicamente na impunidade do executivo e o título seria “E nada acontece?”.
No entanto, com a velocidade vertiginosa na qual se desenrola a cena política atual, entendemos duas coisas: em primeiro lugar, não é verdade que nada acontece, temos resistido firmemente à sucessão de iniciativas destrutivas desse governo. Em segundo lugar, concluímos que, nesse momento, deveríamos privilegiar o instrumento de resistência mais geral e concreto que se coloca no horizonte que é a eleição de outubro, onde através do voto será possível nos livrarmos dessa figura abjeta que ocupa a presidência do país. Com sorte, conseguiremos responsabilizá-lo criminalmente pelos seus atos.
Sabemos que, apesar desse ser um passo decisivo na retomada do caminho democrático, está muito longe de ser suficiente e, se há algo que aprendemos ao longo desses anos terríveis, foi que realmente não basta votar, é absolutamente necessário prosseguir na luta para que o bolsonarismo seja derrotado. Mas, para além disso, é preciso repensarmos a posição em que a maioria de nós se encontrava em 2016, acreditando que a retomada democrática pós ditadura seguiria um caminho relativamente seguro em direção a uma democracia real.
Ignoramos o que se passava aqui, bem perto de nós. Diante da situação dramática de violência e precariedade das periferias da cidade do Rio de Janeiro, com a milícia entrando de modo acelerado nas favelas, a grande maioria dos psicanalistas continuava protegida em seus consultórios, confiantes que se avançava na conquista da democracia. É preciso ressaltar que colegas psicanalistas atuantes na área da saúde pública, estiveram bem mais diretamente implicados com o que se passava nas favelas e creio que esse contato com as populações precarizadas trouxe questões ético-políticas importantes para o campo psicanalítico.
A comunidade psicanalítica sempre foi bastante omissa politicamente e, por vezes, conivente com as piores ações de regimes ditatoriais. O caso Amilcar Lobo/Leão Cabernite fala por si só, mas permanece relativamente silenciado apesar da publicação do livro de Helena Besserman Vianna com fartas informações sobre o que aconteceu, cujo título sugestivo é Não conte a ninguém[2]. Da mesma forma como, apesar do trabalho importante da Comissão da Verdade, nunca foi possível a responsabilização dos torturadores do período da ditadura, vide a louvação aberta do Cel. Ustra no golpe contra a Dilma, também a comunidade psicanalítica nunca exorcizou os seus fantasmas. Precisamos que o STF reinterprete a Lei da Anistia. Reinterpreta já STF!
Sob a interpretação vulgar de uma suposta exigência de neutralidade dos analistas escondeu-se uma posição cômoda de adaptação social. Maria Helena Saleme, analista do Sedes Sapientiae, discute a questão em seu livro intitulado A normopatia na formação do analista[3], destacando a inquietante presença nas sociedades psicanalíticas de analistas “normais” e o quanto essa normalidade os aproxima daquela destacada por Hanna Arendt ao descrever os sujeitos obedientes do nazismo. Porém, apesar desse viés da história da psicanálise, diante da iminência da tragédia da última eleição, finalmente, foi possível rompermos essa passividade com a constituição do PUD – Psicanalistas Unidos pela Democracia.
No dia 17 de outubro de 2018, o EBEP – Espaço Brasileiro de Estudos Psicanalíticos/Rio convocou uma reunião com psicanalistas de diversas instituições, com psicanalistas que não estavam formalmente filiados à instituições e com simpatizantes da psicanálise em geral, aqui na ASA, propondo que pensássemos juntos as ameaças à democracia que se faziam presentes na situação eleitoral.
A participação expressiva da comunidade psicanalítica na reunião, mostrou a possibilidade real de fomentar uma aproximação entre psicanalistas de diversas instituições e filiações tendo como motor comum a tessitura de uma frente em defesa da democracia e do exercício da psicanálise. Nesse sentido, foi convocada outra reunião para o dia 13 de dezembro de 2018 onde constituímos o PUD, um movimento supra-institucional da comunidade psicanalítica para pensarmos as formas de atuação que nós, psicanalistas, poderíamos desenvolver no sentido de assegurar a defesa dos direitos humanos e das minorias, como também, das instituições, da liberdade de pensamento e de ação.
Desde então, o Coletivo PUD foi ganhando cada vez mais força e juntos criamos várias frentes de trabalho. Foram criados vários grupos de trabalho, entre os quais, o GT de Clínica tem promovido o diálogo entre diversos grupos que atuam clinicamente com populações precarizadas. Além disso, temos uma Comissão de redação das notas de posicionamento político do PUD. Criamos também o Programa Continuado de Psicanálise, Política e Arte, o Que Boca na Cena? de apoio ao teatro negro que completará 3 anos em agosto e o Psi Maré, um projeto de atendimento psicanalítico gratuito online que teve início em maio de 2020, numa parceria com o Museu da Maré.
Nossas iniciativas têm buscado sempre uma interlocução com outras organizações que lutam pela democracia. Nesse sentido, realizamos uma live para lançamento de nossa Carta de Princípios, onde em uma mesa de debates celebramos esse movimento conjunto com a ABI – Associação Brasileira de Imprensa, a ABJD – Associação Brasileira de Juristas pela Democracia, a Ouvidoria da Defensoria Pública do Estado do Rio de Janeiro, o MNU – Movimento Negro Unificado, o FNDC – Fórum Nacional pela Democratização das Comunicações, o Conselho Regional de Psicologia do RJ e a Aliança Nacional LGBTQI+.
Voltando ao tema dessa mesa, a tragédia brasileira que se desenrola aceleradamente sob nossos olhos e nos impacta com o retorno de questões que julgávamos encerradas, não é uma situação isolada e se insere em uma escala global.
Mbembe[4] destaca que na contemporaneidade experimentamos uma desorientação epistemológica, com a impressão de que não existe mais nenhuma base a partir da qual se poderia articular o trabalho de organização e de expressão do inteligível, dos resultados do exercício do pensamento por oposição às paixões, às emoções e aos afetos.
Não parece que estamos diante disso quando se coloca em dúvida a afirmação de que a Terra é redonda, por exemplo?
Mbembe afirma, então, que estão sendo colocados em cheque um acúmulo de saberes e também os seus limites, gerando a necessidade de repensarmos nossas ferramentas de análise, repensarmos as linguagens e os discursos, inclusive o psicanalítico. É, então, urgente a descolonização dos saberes e a sua pluralização, a necessidade de um descentramento recíproco de todos os saberes e todos os arquivos, uma refundação dos saberes.
Fala também de um acavalamento do tempo, onde se superpõem presente, passado e futuro. O tempo a ser considerado hoje não é mais apenas o tempo das sociedades humanas até então pensado pela História, precisamos levar em conta o tempo das plantas e dos animais, o tempo das bactérias e dos vírus, o tempo da biosfera e da tecnosfera. Todos somos atores, ao mesmo tempo, dos passados e dos devires da Terra e de todos que a habitam. É por isso que se tornou imprescindível atuarmos na transversalidade das lutas, num movimento coletivo de apoio mútuo.
Finalmente, aponta que com o avanço do neoliberalismo, na falta de grandes esperanças de transformação radical do mundo, os homens se voltam para um movimento de ruptura dos laços sociais, em vias de sair da comunidade e em vias de um retorno pulsional ao fenômeno bruto do aqui e agora. Nesse contexto, emergem todo o tipo de soluções messiânicas e apocalípticas. Talvez esse seja também um caminho para pensarmos onde se gestou o reaparecimento da extrema direita no mundo e a emergência de um sujeito como essa figura nefasta e cruel que ocupa atualmente a presidência do Brasil.
[1] Fala de abertura do debate que marcou a retomada dos eventos presenciais do PUD após a pandemia, em 24 de junho de 2022, com os conferencistas Octavio Costa, jornalista, presidente da ABI – Associação Brasileira de Imprensa e Henrique Vieira, pastor, ator e ativista de direitos humanos.
[2] Vianna, Helena Besserman Não conte a ninguém… – Contribuição à história das Sociedades Psicanalíticas do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, Imago, 1994.
[3] Saleme, Maria Helena A normopatia na formação do analista, São Paulo, Escuta, 2008.
[4] Mbembe, Achille Políticas da Inimizade, São Paulo, N-1 edições,2021.