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Psicanalistas unidos pela democracia – Uma promessa possível!

By 14 diciembre, 2018julio 28th, 2021No Comments

Ana Beatriz Lima da Cruz, Anna Seixas, Débora Abramant, Eloá Bittencourt, Leila Ripoll, Liana Albernaz, Natasha Helsinger, Nelma Cabral, Paula Gaudenzi, Sílvia Alexim Nunes, Simone Perelson, Vera Vital Brasil, Wania Cidade

 

RESUMO

O objetivo desse breve escrito é expor as condições de possibilidade da realização de uma reunião da comunidade psicanalítica do Rio de Janeiro, no dia 17 de outubro de 2018, para a discussão da situação política que antecedeu a eleição do candidato de extrema direita, Jair Bolsonaro. Apresentamos também alguns desdobramentos dessa iniciativa.

 

A MANIFESTAÇÃO A FAVOR DA DEMOCRACIA DESDE 2016

Desde 2016, quando a normalidade democrática foi rompida pela arbitrariedade do impeachment da presidenta Dilma Rousseff, a comunidade psicanalítica se sentiu convocada a atuar mais incisivamente na cena pública, afirmando seu apoio à democracia.

O “Manifesto dos psicanalistas a favor da democracia”, organizado por um grupo de psicanalistas do EBEP/RJ juntamente com alguns psicanalistas amigos de diversas instituições teve mais de 1000 assinaturas em todo o Brasil marcando nossa posição diante da ameaça à ordem democrática que naquele momento já se colocava de maneira inquietante.

As diversas demonstrações de arbitrariedade e violência mostravam a judicialização da política e o avanço de um poder de polícia que desconhecia e continua a desconhecer as garantias constitucionais vigentes num estado de direito democrático. A usurpação do poder de autoridades legitimamente nomeadas para o exercício de suas funções representativas, realizada por grupos políticos derrotados nas eleições de 2014, ignorou o ordenamento constitucional e interpretou abusivamente as leis com o único intuito de ocupar o poder e retomar privilégios. Simultaneamente, esses atores políticos incentivaram à produção deliberada de um acirramento de ódios na população promovido pela grande mídia que manipulou ostensivamente os fatos de acordo com seus interesses e em favor desse grupo.

A condição de possibilidade da prática psicanalítica é a existência de um campo livre para a emergência radical das alteridades, pois só assim poderá ser exercida em toda a sua potência.  As psicanálises, quaisquer que sejam as suas orientações teóricas, são altamente sensíveis às limitações da liberdade democrática. Para a psicanálise, trata-se sempre da abertura para o múltiplo da alteridade que tem como condição de possibilidade um Estado não fundamentalista. Ora, o espaço político atual vem sendo construído e remodelado buscando a eliminação e destruição de atores políticos divergentes e produzindo uma permanente escalada do ódio com a afirmação de uma verdade maniqueísta e única. A intolerância à pluralidade e à diferença é hostil à prática psicanalítica e, no limite, a inviabiliza.

A especificidade da relação analítica que demanda a livre circulação da palavra expõe os analisantes a uma situação regressiva de desamparo e, portanto, fica profundamente afetada por um regime de medo e de suspeição. O curto espaço de tempo em que estamos reconstruindo a nossa jovem democracia não nos permite esquecer que as sociedades psicanalíticas não atravessaram incólumes o período ditatorial recente (de 1964 a 1985) e, portanto, é preciso estarmos alertas para a repetição que se anuncia no horizonte. Para tal, acreditamos firmemente que, nesse momento crucial para o nosso país, é fundamental que nos constituamos como um coletivo capaz de atuar politicamente. A política é algo que nos concerne como psicanalistas, como sujeitos e como atores no campo social, cultural e político.

 

A PRIMEIRA CONVOCAÇÃO DO EBEP/RJ – A IMPORTÂNCIA FUNDAMENTAL DA HORIZONTALIDADE

O EBEP é uma instituição horizontal e plural, fundada em grupos de trabalho que se constituem em espaços de liberdade e responsabilidade. No cerne da instituição está o entendimento de que a prática psicanalítica, mesmo quando se atém ao espaço clínico do consultório, é uma pratica ético-política.

O foco de nosso trabalho é a discussão do ponto de vista clínico, teórico e político das questões oriundas das práticas psicanalíticas e suas relações com a realidade brasileira. Os grupos de trabalho são autônomos para decidir sua temática, suas leituras e seus modos de funcionamento. Os grupos de trabalho e a assembleia soberana de membros sem qualquer distinção hierárquica, seja por alguma qualificação distintiva, seja por antiguidade de pertencimento, encarnam a efetivação dos princípios de horizontalidade.

Destacamos que dentro de uma instituição horizontal, assim como em qualquer espaço, operam transferências e relações de poder. Essas forças, não estando submetidas a uma grade hierárquica, exigem muito trabalho dos membros: um exercício constante de autonomia e cuidado de si na relação com os outros e no convívio institucional. Esse exercício se realiza na tensão existente entre a errância necessária para permitir os caminhos singulares e a necessidade de construção de espaços coletivos onde os projetos são problematizados, reconhecidos, contestados e o pensamento é exposto ao outro e à diferença.

Birman[1], analisando a contribuição do discurso psicanalítico para as leituras políticas atuais no campo da esquerda, empreendidas por Butler, Laclau e Zizek[2], afirma a importância do discurso teórico da psicanálise na contemporaneidade para pensar a política e mostra que isso se deu prioritariamente mediante a formulação das categorias de sujeito e de subjetivação, onde as demandas deslocam-se do registro das identidades para o registro das identificações.

Essas contribuições têm sido muito produtivas para pensarmos nossa organização interna em torno de jogos de força que orientam a ação institucional submetidas às diferentes relações de poder presentes no campo transferencial. Seria, então, em torno de hegemonias contingenciais (Laclau[3]) ou na construção de um “nós”, pela assunção da vulnerabilidade (Butler[4]) que esse funcionamento institucional operaria.

Diante das mazelas de que sofrem atualmente as democracias representativas, acreditamos que se colocou a urgência de uma participação da psicanálise nas formulações políticas. Essa discussão que vem sendo travada por Butler, Laclau e Zizek permite que sonhemos com a possibilidade de uma democracia radical a que Chantal Mouffe se refere como um pluralismo agonístico, onde « o objetivo de uma política democrática é o de transformar o antagonismo potencial em uma agonística »[5]

 

A AFIRMAÇÃO DA AMIZADE

Fazendo uma recuperação recente da trajetória que culminou na possibilidade de montarmos a reunião da comunidade psicanalítica, no dia 17/10/2018, destacamos que a amizade construída com algumas colegas da SBPRJ, em particular com Wania Cidade e Eloá Bittencourt, estabeleceu-se num território de trocas e compartilhamento de ideias em um grupo de estudos conjunto ministrado por Joel Birman, além de uma aproximação de interesses em outros espaços que também foram sendo partilhados. Estes laços de amizade e de trabalho vêm operando a despeito das nossas pequenas diferenças políticas e também das diferentes orientações teórico-políticas de nossas instituições de pertencimento.

No território dessa cumplicidade estabelecida, o manifesto pela democracia lançado no início de outubro de 2018 pela SBPRJ, acordou-nos para a necessidade de manifestarmos publicamente nossa posição institucional. Reconhecemos, então, em nosso manifesto, a importância da iniciativa da SBPRJ, nesse chamado político comum que nos aproximou.

Nesse mesmo grupo de estudos, construímos uma outra ligação de amizade e pensamento com Debora Abramant, psicanalista que não é filiada a nenhuma instituição, embora acompanhe muito de perto o trabalho do EBEP. Débora vem promovendo uma série de debates em um teatro no Rio de Janeiro, intitulados “Precisamos falar sobre o fascismo”, onde questões atuais são problematizadas sob diversos ângulos e atores sociais, construindo um espaço de pensamento sobre essa temática.

Débora nos convocou para a ação com a seguinte interpelação: o que o EBEP, com sua história e seu discurso em defesa da pluralidade e da horizontalidade, bem como com a importância dada à política, pretende fazer diante da situação eleitoral que atravessamos?

Destacamos, então, nesses dois episódios recentes a importância da amizade que reconhece e convoca o outro pelo seu desejo de reconhecimento compartilhado. Essa amizade que, conforme Derrida[6], oferece hospitalidade para o radicalmente outro, o diferente, que não deve ser enquadrado em nenhuma exigência identitária prévia.

Assim foi se tecendo uma rede com possibilidade real de atuação política conjunta.

 

COMO FOI POSSÍVEL UNIR, POLITICA E CONTINGENCIALMENTE, OS PSICANALISTAS? COMO SE INICIOU O MOVIMENTO QUE CULMINOU NUMA REUNIÃO DA COMUNIDADE PSICANALÍTICA REUNINDO AS MAIS VARIADAS FILIAÇÕES INSTITUCIONAIS E DE PENSAMENTO?

Como resposta a essas convocações das amigas, partimos para a ação e em menos de uma semana, a ASA – Associação Scholem Aleichem acolheu nossa demanda de local e, sustentados pela infraestrutura do EBEP/RJ, convocamos todos aqueles que constavam de nossa mala direta e montamos uma mesa com algumas pessoas que conseguimos acessar e que julgamos representativas da comunidade psicanalítica. Aceitaram prontamente nosso convite para compor uma mesa coordenada por Natasha Helsinger – presidente do EBEP/RJ:

Antonio Quinet – psicanalista, Escola de Psicanálise dos Fóruns do Campo Lacaniano

Liana Albernaz – psicanalista, Sociedade Brasileira de Psicanálise do Rio de Janeiro

Pedro Gabriel Delgado – Coordenador Nacional de Saúde Mental do Ministério da Saúde (2001-2010), professor do Departamento de Psiquiatria e Medicina Legal da UFRJ.

Silvia Alexim Nunes – psicanalista, Espaço Brasileiro de Estudos Psicanalíticos/RJ

Vera Vital Brasil – psicanalista, Equipe Clínico Politica RJ, Territorios Clínicos de la Memoria.

Temos certeza que essa ação só foi possível graças aos laços de amizade e trabalho com os colegas e à necessidade premente de nos unirmos diante da situação do país. Além disso, graças ao funcionamento horizontal do EBEP, à assunção do desejo como motor da ação e à vontade de fazer diferente.

Ainda assim, nossa experiência cotidiana mostra que estamos sempre lutando com divergências próprias à política, não há política sem conflito, e também internamente, a cada momento, é preciso se posicionar diante de jogos de força divergentes e antagonismos que precisam ser confrontados pela argumentação, pela palavra e pela ação que dá peso a essa palavra. Ou seja, conforme afirma Laclau, não há grupo hegemônico que seja totalizado em relação a uma ordem estabelecida e a relação entre os membros de um grupo é sempre interna e externa, sendo justamente essa tensão que movimenta os coletivos e os faz escaparem dos movimentos identitários.

É claro, a montagem da reunião foi restrita pelas dificuldades de contato e pela urgência do tempo, mas verificamos que funcionou bastante bem no sentido de agregar um número expressivo de psicanalistas, movidos pelo desejo de expressarem suas angústias, compartilhando o momento difícil que estávamos (e estamos) enfrentando.

A reunião marcou um momento importante de atuação da comunidade psicanalítica que saiu às ruas para apoiar a opção democrática e fazer frente à ascensão do candidato que se caracterizava por uma postura obscurantista e desafiadora da ordem democrática.

Já antes do início da campanha, o presidente eleito quando era parlamentar, ao votar favorável ao impeachment da presidenta Dilma, dedicou seu voto à memória do conhecido torturador Coronel do Exército Brilhante Ustra, atitude que não recebeu nenhuma punição por parte da Câmara de Deputados, numa banalização da tortura inaceitável num regime democrático. Tememos que esse fato, permanecendo sem qualquer punição, funcione agora como uma autorização explícita da tortura no país, onde nunca se apurou e puniu os torturadores do período ditatorial. Junte-se a isso, o discurso que circula atualmente nos meios militares de que não houve golpe militar em 64 e nem 21 anos de ditadura no Brasil, tentando desse modo apagar a história e produzir uma versão elogiosa do  golpe de 64 e da longa e arbitrária intervenção militar.

Bolsonaro, em sua campanha, defendia o extermínio do oponente, a liberação do porte de armas, a retirada de direitos de cidadania duramente adquiridos por trabalhadores e minorias como, índios, negros e comunidade LGBT e a perseguição das minorias e de movimentos sociais como MTST (Movimento dos Trabalhadores Sem Teto) e MST (Movimento dos Sem Terra).

Foi essa explicitação de posições abertamente antidemocráticas e discriminatórias que nos convocou a enfrentarmos unidos esse retrocesso que atinge a sociedade brasileira.

Além disso, como um dos desdobramentos da reunião geral, surgiu um movimento intitulado “Psicanalistas na Praça” em que um grupo de psicanalistas de diversas filiações reuniu-se para escutar as pessoas nas praças do Rio de Janeiro. A despeito de ser um grupo relativamente pequeno, cerca de 30 psicanalistas, a experiência mostrou a urgência de acolher as manifestações de sofrimento advindas da insuflação do ódio que, deliberadamente, foi produzido com fins de manipulação política da população. Grupos de três ou quatro psicanalistas foram às praças, de forma apartidária, com um pequeno cartaz e alguns banquinhos para realizar a escuta. No cartaz se anunciava: “Psicanalistas na Praça: você está sofrendo com essas eleições? Venha nos contar!”

Após essa experiência, o grupo já realizou duas reuniões com vistas a refletir sobre esse trabalho e analisar a pertinência e viabilidade de continuar ocupando o espaço público dessa forma. Uma ideia ainda muito incipiente seria, mediante o ato psicanalítico/político buscar resistir à homogeneização do pensamento e problematizar certas verdades prontas, deslocando os sujeitos de suas certezas. As formas de implementar essa ideia estão em discussão, porém há um desejo claro do grupo de se manter vivo e atuante.

Outra ideia que surgiu da reunião geral do dia 17 foi a constituição de um Banco de Horas de psicanalistas para atendimento de pessoas que por sua vulnerabilidade estarão mais expostas à violência. Essa ideia ainda não foi trabalhada com mais consistência de modo a dar origem a alguma ação para a sua implementação.

Em tempos de comunicação digital, sem desprezá-la, verificamos a potência inegável de uma reunião presencial que deu vazão aos afetos e ideias, reforçando nossos laços e criando um espaço de proteção, ação e resistência.

Nesse sentido, para manter a mobilização dessa primeira reunião e prosseguir no trabalho de atuação política conjunta, o coletivo Psicanalistas Unidos pela Democracia convocou uma nova reunião geral para o dia 13 de dezembro, na qual se pretende constituir uma Frente Ampla dos Psicanalistas do Rio de Janeiro.

Acreditamos que a convocação e realização da reunião de cerca de 180 psicanalistas, filiados a instituições ou não, tendo como significante a defesa da democracia, pode ser pensada nos mesmos termos que vimos praticando cotidianamente no EBEP. Desse modo, nosso exercício interno favoreceu essa organização e todos os seus desdobramentos.

Apostamos, então, que essa união em torno do significante vazio defesa da democracia, relevando, sem ignorar, nossas diferenças, possa ser uma ação potente para enfrentarmos o que se apresenta como destino político nos próximos anos. Além disso, apostamos também, na experiência da união contingente dos psicanalistas em defesa da própria psicanálise, tão ameaçada nesses tempos conturbados.


[1] Birman, J. Psicanálise e filosofia política na contemporaneidade – sobre as categorias de povo, de populismo e de identidade na atualidade in Hoffmann, C. & Birman, J. Psicanálise e Política: uma nova leitura do populismo, São Paulo:Instituto Langage, 2018.

[2] Butler, J., Laclau, E.& Zizek, S. Contingency, Hegemony, Universality – Contemporary Dialogues on the Left Londres:Verso, 2000.

[3] Laclau, E. A Razão Populista. São Paulo:Três Estrelas, 2013.

[4] Butler, J. Vida precária – el poder del duelo y la violência, Buenos Aires:Paidós, 2006.

[5] https://www.cairn.info/revue-rue-descartes-2004-3-page-179.htm – Mouffe, Chantal. « Le politique et la dynamique des passions », Rue Descartes, vol. 45-46, no. 3, 2004, pp. 179-192.

[6] Derrida, J. Anne Dufourmantelle convida Jacques Derrida a falar da Hospitalidade, São Paulo: Escuta, 2003.

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