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1920/2020: a dupla virada do traumático

By 22 marzo, 2021julio 28th, 2021No Comments

Bárbara de Souza Conte [1]

 

Resumo: No centenário do texto Além do Princípio do Prazer, este artigo propõe examinar a dupla virada do traumático, que modifica a teoria das pulsões e apresenta a teoria estrutural. Os conceitos de ligação psíquica e de compulsão de repetição serão analisados como balizadores para pensar o trabalho do traumático como criação e destruição sob a forma de melancolização. A dupla virada, que terá seus efeitos na teoria freudiana a partir de 1920, em 2020, será utilizada para discutir a violência de Estado, levando em conta a desautorização do percebido e a repetição do excesso, que desfaz pactos civilizatórios e coloca em questão os pactos perversos.

Palavras-chave: Compulsão de repetição. Melancolização. Traumático. Violência de Estado.

 

Linhas de decisão psíquica atravessam a guerra: à transformação da guerra corresponde uma transformação do combatente (Benjamin, 1994, p. 69).

 

A virada de 1920

Em uma carta dirigida a Pfister no dia 27 de janeiro de 1920, Freud lamenta ao amigo a perda de sua filha, vitimada por uma “gripe/pneumonia”, e a impossibilidade de despedida, uma vez que não havia trem — “esta distância teima em continuar sendo distância” (Wondracek & Junge, 1998, p. 101). Dizia também que a felicidade só existia entre sua filha e o marido pois, no exterior, havia “guerra, recrutamento, ferimentos, corrosão das posses”. Mais adiante, afirma: “perder um filho parece ser uma pesada ferida narcísica; o que é o luto, provavelmente ainda experimentaremos” (Wondracek & Junge, 1998, p. 102).

Nesse trecho de sua correspondência com Pfister, Freud apresenta três situações: os efeitos da primeira guerra, a “peste” da gripe espanhola e os efeitos da perda — lutos a serem vividos. Nesse contexto, escreve seu famoso Jenseits des Lustprinzips e revela que havia começado a escrever o primeiro borrador em março de 1919; no mês de maio do mesmo ano, comunicou que o havia concluído. Essa data coincide com o encerramento da Primeira Guerra Mundial, 6 de maio de 1919, com a assinatura do Tratado de Versalhes, e seu aniversário.

Freud (1920/1990c) trabalhou, sob esse pano de fundo dos efeitos da guerra, a compulsão de repetição, as neuroses traumáticas, as formas de luto e a pulsão de morte, pontos que analisarei no texto que comemora 100 anos e que ficou conhecido como “a virada de 20”, mudança estrutural na teoria do aparelho psíquico.

As reflexões que inovaram a teoria do aparelho psíquico e, em sua decorrência, a técnica psicanalítica correspondem ao título de seu estudo Além do princípio do prazer (Freud, 1920/1990c), em que apresenta a compreensão de que o princípio do prazer é fruto do alívio do desprazer, uma concepção econômica intrapsíquica que operava pelo mecanismo do recalcamento. Assim,

. . . nos convencemos de que mesmo que sob o império do princípio do prazer existem suficiente meios e vias para converter em objetos de recordação e elaboração anímica o que em si mesmo é desprazeroso. Uma estética de inspiração econômica deveria ocupar-se destes casos e situações que desembocam em um ganho final de prazer. (Freud, 1920/1990c, p. 17)

Porém, os eventos do pós-guerra com efeitos psíquicos traumáticos e dificuldades quanto à elaboração da perda despertaram em Freud observações que deram continuidade à sua reflexão: “. . . o que resta é bastante para justificar a hipótese da compulsão de repetição, e esta nos aparece como a mais originária, mais elementar, mais pulsional, que o princípio do prazer que ela destrona” (Freud, 1920/1990c, p. 23).

No ponto quatro do texto de 1920, Freud trabalha a questão da consciência e da proteção contra estímulo como forma de enriquecer a compreensão da diferença do que chamou de energia ligada e energia desligada. As representações formar-se-iam a partir:

. . . do avanço de um elemento ao outro, a excitação tem que vencer uma resistência, e justamente a redução desta resistência cria a marca permanente da excitação — facilitação; poderíamos pensar então que no sistema Cc não existe resistência de passagem desta índole entre um elemento ao outro . . . os elementos do sistema Cc não conduziriam então nenhuma energia ligada, senão somente uma energia suscetível de livre descarga (Freud, 1920/1990c, p. 26).

Desse modo, Freud abre caminho para  compreender como as formas de ligação psíquicas, a partir da diminuição das intensidades e das resistências e também estabelece a diferença de que nem tudo que está manifesto se torna consciente. Além disso, Freud propõe que as intensidades não sejam compreendidas somente como procedentes do interno (do aparelho psíquico), mas também do externo, quando apresenta a função da barreira antiexcitações que vai “filtrar” a intensidade de estímulos que ingressam no aparelho psíquico, apresentando como sua principal função “preservar do influxo nivelador, e portanto destrutivo, das energias hiper grandes que trabalham fora” (Freud, 1920/1990c, p. 27). Assim como quando a intensidade aumenta e o desprazer se incrementa ocorre a projeção como forma de defesa, “chamamos traumáticas as excitações externas que possuem força suficiente para perfurar a proteção antiestímulos” (Freud, 1920/1990c, p. 29).

Quando ocorre uma perturbação energética que impede as formas de defesas citadas — diminuição de intensidade, projetar para o exterior e operar como proteção à membrana antiexcitação —, o princípio do prazer fica abolido e o aparelho psíquico      é invadido por grandes volumes de estímulo, sendo necessária outra forma de lidar com a intensidade: “dominar o estímulo, ligar psiquicamente os volumes do estímulo que penetraram violentamente a fim de os conduzir, depois, a sua tramitação (psíquica)” (Freud, 1920/1990c, p. 29).

A energia ligada traça um caminho psíquico de representar as vivências infantis e as experiências do sujeito e produz as formações psíquicas que são denominadas simbólicas. Essa situação é descrita de forma original por Freud através da brincadeira do fort-da de seu neto, com 18 meses, quando da ausência de sua mãe, Sophia. O atirar e trazer de volta o carretel atado a um cordão que a criança comandava ao mesmo tempo que nomeava seus significantes fort-da[2] — assim como fazia aparecer e sumir sua imagem no espelho do relógio da casa de Freud — indicava o sucesso de uma operação psíquica constitutiva, que, mais tarde, Lacan (1988) dirá que é quando a criança nasce para a linguagem e domina sua privação pela falta. É, também, uma ação elaborativa da imagem de si mesmo. Ambas, a aquisição da linguagem e a integração da imagem de si apontam processos de ligação.

Binden é o processo preparatório de lidar com o excesso de estímulos, capturando-o e ligando-o psiquicamente para poder, então, processá-lo. Já o desligamento, modelo da neurose traumática, é caracterizado por Benjamin da seguinte forma: “os combatentes tinham voltado silenciosos do campo de batalha . . . mais pobres em experiências comunicáveis” (1994, p. 115); ficavam paralisados no tempo, em um presente que os atormentava, “tendências que seriam mais originárias que o princípio do prazer” (Freud, 1920/1990c, p. 17), ao modelo dos sonhos traumáticos que apontam o fracasso da ligação diante do excesso de excitações.

A partir dos descobrimentos do efeito do traumático tanto na observação do jogo do fort-da como nos achados das neuroses traumáticas, verificamos em 1920 a virada do traumático: a criação e a repetição.

Ressalto no contexto do pós-guerra que Freud viveu um ponto apresentado a partir das ideias de Zizek (2003), que descreve a paixão pela morte como o desejo de destruir, “a fúria guerreira” dos soldados sem rosto e sem nome. Em contraposição, há um momento, em combate, em que o inimigo adquire um rosto e se torna uma pessoa que possui uma história. É aí que se torna impossível matá-lo, o que leva Zizek a realçar que, nas trincheiras da Primeira Guerra Mundial, “Jünger já celebrava o combate corpo a corpo como o autêntico encontro intersubjetivo e a autenticidade que reside no ato de violenta transgressão” (Zizek, 2003, p. 19). O sem rosto e sem nome, a indiferença da identidade e da alteridade, permitia o ato de violência — a paixão pela morte. O reconhecimento do outro com sua identidade, seu rosto, impedia o ato destrutivo.

Depois da guerra, Freud (1917/1990d) fala dos soldados que retornavam e constata que “é como se esses pacientes não tivessem findado com a situação traumática, como se estivessem enfrentando-a como tarefa imediata ainda não executada” (Freud, 1917/1990d, p. 325). Descreveu, então, as chamadas neuroses traumáticas como decorrentes das vivências de violência e apontou a intensidade como uma invasão no psiquismo que mantinha o sujeito vivendo o acontecimento, efeito do traumático do igual, do idêntico, sob a forma da compulsão de repetição, o ato violento repetido.

Assim, podemos pensar que houve tanto um tempo de paixão quanto um tempo do horror, e que ambos aparecem no texto de 1920, marcando a transformação da paixão pela morte, pelo impedimento do ato, um pacto civilizatório humanizador. O inimigo podia ser poupado desde que houvesse o olhar do outro, descrito no texto de Jünger em um exemplo no qual o soldado que seria morto olha para o soldado que o mataria e mostra a foto de sua família — efeito do olhar que evidencia o reconhecimento do outro em si.

A situação de horror do pós-guerra, por sua vez, Freud descreve como uma intensidade que não escoa, que não tramita psiquicamente, o que veio a referir mais tarde como um certo “apetite de destrutividade”[3]. O princípio do prazer/desprazer como regulador do ato não é suficiente; a intensidade inunda o aparelho psíquico e a compulsão de repetição paralisa as formas de ligação psíquica, do simbólico, e se descarrega como ato violento.

Esse estado de continuar a viver o efeito da violência teve que ser escutado não como narrativas dos acontecimentos, mas sim nas marcas do indizível, uma vez que as narrativas emudeciam os soldados como resultado do evento traumático. Tratava-se de escutar na repetição do igual até o momento da instauração da diferença, de uma ligação, modelo de transformação dos sonhos traumáticos — que repetem a cena de horror e se expressam como angústia automática — em sonhos com alguma forma de transformação onírica e que indicassem uma ligação psíquica, realização de desejo.

E como não pensar no modelo do trabalho do luto, que permite o reconhecimento da perda e o investimento do objeto a partir de reinvestimentos, criação simbólica de novas ligações psíquicas, como o trabalho do traumático como criação? Recorda-se, nesse sentido, o que até então estava soterrado e silenciado e que aparece no texto freudiano de 1920, na nota de rodapé 22, que Sabina Spielrein, sua discípula, já havia escrito em 1912, em um artigo com o título A destruição como origem do devir, em que afirma que “o devir não é passagem do ser ao não ser, e sim conflito irremediável entre a parte e o todo, e o desejo de regressar ao todo” (Cromberg, 2014, p. 228). Ou seja, a destruição como devir não é um retorno ao inorgânico, mas uma tentativa de criação, modelo que apontamos como possível para entendermos a compulsão de repetição do traumático como transformações, ligações psíquicas que criam algo novo.

Freud também apontou, em 1920, que a doutrina das pulsões “prometia esclarecimentos”, marcando que desde sempre havia o reconhecimento de um componente sádico na pulsão sexual que poderia tornar-se autônomo e governar, na qualidade de perversão, a aspiração sexual. Ele questiona, então: “não caberia supor que esse sadismo é, na verdade, uma pulsão de morte separada do eu por esforço e a influência da libido narcísica; de modo que aparece só no objeto”? (Freud, 1920/1990c, p. 52). Aqui, aparece sua hipótese de que o apoderamento amoroso coincide com o aniquilamento do objeto e a questão de se esse é o movimento primeiro da pulsão ou “se quem sabe haveria um masoquismo primário” (Freud, 1920/1990c, p. 53).

De uma só tacada, coloca-nos perante o tema da pulsão de morte e, mais adiante, do da destrutividade, bem como a proposição de que o masoquismo não seria secundário (ao sadismo), mas sim primário, o que resultou na ampliação de sua teorização sobre o masoquismo em seu texto O problema econômico do masoquismo (Freud, 1924/1990b). Assim, abre um novo panorama quanto ao tema das pulsões e do masoquismo que até nossos dias nos interroga e aponta direções quanto à paixão pelo real, a via do trabalho do traumático como destruição.

A melancolização é uma forma para pensar o trabalho do traumático como destruição, uma vez que é um processo de desligamento que impede o processo do luto quando a violência assume a forma de terror[4]. Em um projeto denominado Clínicas do Testemunho, que ocorreu de 2013 a 2017[5], junto à Comissão de Anistia do Ministério da Justiça, como parte de um programa da Justiça de Transição em sua terceira etapa — reparação psíquica aos afetados pela violência de Estado no período da ditadura civil-militar brasileira —, ouvimos pessoas que viveram a experiência de perder familiares por desaparecimento forçado, prática de extermínio utilizada no referido período. A escuta das pessoas ouvidas trouxe a indagação de como seria possível, diante da ausência do corpo, elaborar o luto — luto por uma pessoa cuja morte não havia sido reconhecida pelo Estado e cujo corpo não se havia encontrado; luto não realizável, uma vez que não há um substituto possível.

Os lutos impossíveis, como o de familiares de mortos e desaparecidos no regime da ditadura ou das mães que têm seus filhos assassinados e que, como Antígona, brigam para enterrar seus mortos — porque são únicos e não podem ser substituídos —, falam de um “objeto essencialmente perdido” (Allouch, 2004, p. 69), em que a questão não é uma questão de realidade — objeto pode estar e não estar —, mas uma questão de verdade — não é verdade que isso aconteceu. Trata-se de processo de melancolização que, ao não tomar o caminho de uma elaboração, irrompe como constante excesso de violência, que gera um vazio representacional (Viñar, 2014), transformando a narrativa das vivências em “brancos”, “buracos”, como os expressos nestas falas[6]: “eu perguntava… explicavam… eu perguntava de novo… e esquecia de novo […] nome da mãe era um, o nome do pai era outro… não sabia qual era… minha infância tem a lembrança de um mistério. Vê-se, portanto, um luto nunca encerrado que se transforma em um processo de melancolização.

Esse é um tema que se tornou atual, uma vez que nos deparamos em nosso tempo com a paixão pelo real, termo cunhado por Badiou (2007) para descrever o século XX como o século da destruição.

 

A virada de 2020

A virada de 2020 é a peste que nos acomete. É curioso pensar que Freud denominava a psicanálise como peste quando de sua chegada aos Estados Unidos da América, continente que não era de seu agrado. A desconfiança de Freud de que a psicanálise não fosse bem recebida não foi à toa, uma vez que tomou rumos distintos dos enunciados nas Conferências na Clark University[7].

Assim como a Primeira Guerra abriu caminho para o conhecimento das neuroses traumáticas, que passam a ser objeto e a ampliar a teoria psicanalítica com os conceitos de compulsão de repetição, o traumatismo e seus efeitos, a pulsão de morte e as necessárias reformulações na técnica e na direção da cura, atualmente, impõem a reflexão sobre a virada do traumático como desamparo e incerteza diante do excesso que exige, novamente, indagar sobre o efeito dos acontecimentos nos sujeitos que somos hoje.

Entre 1920 e 2020, ocorre a Segunda Grande Guerra, que se configura a partir de um fenômeno de massa, o nazifascismo, com identificação, adesão e servidão à figura de um líder autoritário. O desfecho da guerra, em 1945, com a chamada “solução final” e a bomba atômica, são marcas definitivas da destrutividade e da ruptura do pacto civilizatório. O holocausto em campos de extermínio matou 6 milhões de pessoas, e os bombardeios atômicos realizados em Hiroshima e Nagasaki pelos Estados Unidos da América mataram entre 150 e 240 mil pessoas, marcando a primeira vez que armas nucleares foram utilizadas contra alvos civis.

Além do princípio do prazer continuou a produzir efeitos ao longo dos anos. Na psicanálise, o recalque como organizador psíquico não é mais mecanismo central produtor de soluções psíquicas. Freud abriu o caminho com seus estudos sobre a cisão do ego, tomando do modelo do fetiche que uma realidade insuportável — a mulher sem falo, realidade que é refutada sob a forma de clivagem do ego — leva em conta a realidade percebida, mas desmente o percebido sob a forma de uma cisão do ego. Portanto, configura-se um mecanismo que se desloca do âmbito do pulsional, ou seja, o horror da mulher sem falo, para o desmentido da realidade — a mulher tem um falo.

A compulsão de repetição levou Ferenczi (1933/1993) a apontar que o traumático não reside exclusivamente no ato de violência vivido pela criança senão igualmente no desmentido, infligido pelo mundo adulto e pelo ambiente social que não reconhece a vivência de excesso enquanto tal.

O desmentido seria, assim, um acontecimento sem autorização de ser vivido, um episódio sem sujeito cuja distinção entre os registros de interioridade e exterioridade permaneceria anulada. Os efeitos psíquicos do desmentido repercutem diretamente no eu do sujeito, uma vez que o episódio não cessa efetivamente de existir; sua presença cria uma espécie de enclave psíquico: a percepção se inscreve no psiquismo, mas sem autorização para entrar na transitividade do campo simbólico e ligar-se às demais marcas mnêmicas.

Laplanche (2012) afirma que a palavra Nachtraglich reaparece, em novembro de 1897, como Nachtraglich(keit), precisamente na fenda de quando a teoria da sedução foi abandonada. Reaparece, junto à sua nova descoberta, o sufixo keit, traduzido, então, com o efeito do après-coup, que dá a ideia de um tempo em espiral. Esse tempo em espiral está feito de recapitulação e acontecimento, posto que em cada volta se leva em conta a volta precedente — e em cada volta há a ressignificação da anterior. É mais além do tempo da segunda cena, é um tempo em espiral, e há voltas da espiral que não se traduzem, mas produzem efeitos.

Aí reside, também, a fundamental diferença entre o efeito do trauma que se torna autotraumático — do interior, do sexual, produto da segunda cena traduzida da sexualidade do outro — e o efeito do trauma que provém do exterior, das catástrofes da natureza, dos acidentes e da ação da crueldade de outro — os genocídios e o terror de Estado. Traumático é, então, fruto do excesso, que não se traduz, mas produz efeito.

Diante do horror da Segunda Guerra, marcas geraram profundas consequências, pois tornaram necessário colocar na pauta de qualquer disciplina o efeito destrutivo do homem, seja com seu semelhante, seja com a natureza.

Ressaltam-se como efeitos do desmentido produzido pelo holocausto e dos sucessivos genocídios — de armênios, curdos, sérvios, entre outros — o silêncio e a desautorização sobre o acontecido. O desmentido comporta não somente o que não é possível ver, representar ou dar palavra, mas também o que fica desmentido pelo outro que ouve. Ao não dar reconhecimento, não autoriza a existência do vivido.

As hipóteses ferenczianas transladadas a nosso tema e ao nosso tempo levam a pensar os efeitos de uma política de Estado calcada no desmentido e os efeitos da desautorização do vivido no campo individual e coletivo. A “herança” de um passado ditatorial, tanto da Shoa quanto da ditadura civil-militar brasileira, mostra, hoje, os efeitos devastadores do que foi silenciado, sabido e recusado, desautorizado enquanto percepção e é apresentado na forma de um presidente que defende a ditadura, enaltece um torturador e pauta seu comportamento genocida, de extermínio, como um bem — ou, diria, um gozo? —, deslegitimando os efeitos nefastos do ocorrido.

Existe uma diferença entre o que se passou depois da Segunda Guerra e as ditaduras latino-americanas. Na primeira, o testemunho e os julgamentos, como o de Eichmann, abriram a possibilidade de uma política de reparação e de reconhecimento social e coletivo — refizeram a história. Nas ditaduras latino-americanas, nem todos os países, entre eles o Brasil, concluíram o processo de uma justiça de transição da ditadura ao Estado Democrático de Direito que restaura a memória e a História. Ou seja, o que está silenciado, emudecido, não sabido continua produzindo efeitos traumáticos de violência, como as falas do presidente para a maioria do povo em um combalido Estado democrático que não efetiva sua História.

Poderíamos afirmar, retomando as palavras de Freud (Wondracek & Junge, p. 102) sobre “qual luto que ainda experimentaremos”,  que ainda precisamos escutar as falas que continuam a testemunhar os efeitos da violência de Estado sob as mais diferentes formas no mundo — afetados pelas ditaduras, sobreviventes de genocídios, refugiados, povos indígenas, negros, movimentos de identidade de gênero, favelados — e, assim, repactuar as heranças, refazendo o pacto civilizatório.

Nesse contexto, ressalto pontos para que se reflita sobre a posição ética diante da não legitimação dos fatos, que continuam desautorizados a serem percebidos enquanto autorizam a manutenção da violência e do gozo, e não a sua responsabilização. Podemos pensar que esse será um dos motivos de estarmos a viver em uma servidão voluntária quando o líder não corresponde ao ideal buscado pela maioria, mas os homens o autorizam mesmo assim?

La Boétie, em seu Discurso Sobre a Servidão Voluntária, de 1549, afirma que “os homens, enquanto neles houver algo de humano, só se deixam subjugar se forem forçados ou enganados por armas estrangeiras, ou por si mesmos” (1549/2006, p. 22), o que nos faz indagar sobre o que leva o humano que há em cada homem a se deixar subjugar. O que fica desmentido que coloca o homem na posição de servo? Arriscamos a pensar que o desamparo da invisibilidade é uma dessas condições.

Ainda sob a visão de La Boétie, “quando um rei se declara tirano, a escória se junta a sua volta para participar do saque. Depois são mortos com a mesma crueldade, sem confiança . . . o tirano, ao não se fazer amar, destrói” (1549/2006, p. 46) — inclusive, no Discurso, é citado o caso de Nero, que matou a mãe Agripina, que, por sua vez, matou o marido para que Nero acedesse ao trono. Depois, Nero ateou fogo em Roma.

Assim, o autor demonstra que “onde há crueldade, os que se reúnem para conspirar não são amigos, são cúmplices” (La Boétie, 1549/2006, p. 53), a partir do que podemos pensar que, mais além da identificação com o ideal de poder, temos os pactos perversos, de repetição do gozo, que colocam em questão a posição ética e subjetiva diante da lei que legitima os fatos. Há o poder e há uma posição subjetiva, que renova o questionamento sobre qual é a justificativa ética dos métodos de quem está no poder e de seu desfecho diante do outro. Aí se inscreve a paixão pelo real, em que as imagens e os fatos (de quem os realiza) invadem e destroem a realidade, marcando registros distintos no sujeito.

Aponto que os pactos perversos têm o lugar de gozo do sádico e do masoquista, o que provoca a pensar sobre como desfazer esse estado de jugo/aceitação voluntária. Além da abertura indicada por Freud sobre um tempo primordial que denominou masoquismo erógeno e que sinaliza uma condição masoquista (Conte, 2002), como forma do sujeito de se fazer constituir, autores como Birman (2017) mencionam registros diferentes do desamparo e da desolação, como duas figuras do masoquismo que delineiam modalidades diversas de subjetivação e destinos opostos para o sujeito.

Quero salientar que, diante desses pactos perversos de crueldade, destrutividade, desautorização dos fatos, de condição masoquista, de desamparo e de desolação haveremos de pensar em atos de resistência. Agamben (2018, p. 59) afirma que “Deleuze definia o ato de criação como um ato de resistência”, uma oposição a uma força ou ameaça externa, fazendo com esse autor um diálogo sobre o ato de criação como ato de resistência. Com Aristóteles, trabalha a oposição da potência como ato que pode, ou não ocorrer — potência como uma presença privativa do que não está em ato, renúncia do ato. No entanto, diferente de ser essa renúncia uma impotência, aponta para a potência de não, potência de fazer e de não fazer e “está no homem constitutivamente em relação com a própria privação” (Agamben, 2018, p. 65).

Em cada ato de criação, há algo que resiste e se opõe à expressão: a potência de não, tomada em uma dimensão moral que restaura uma medida de nossa ação, que resiste ao ato e, por isso, moral — ação de resistência de não sucumbir ao pacto do gozo que é anticivilizatório. Porém, para não sucumbir ao pacto masoquista do gozo, do tornar-se servil e submisso, deve haver uma dose de desobediência.

Gros (2018, p. 91) se refere à Antígona dizendo que “desobedecer não é só invocar uma legitimidade superior, afirmar que se obedece a outras leis, é pôr em causa o próprio princípio de uma legitimidade . . . uma dose de transgressão”. Então, com Gros, perguntamos: o que se diz legítimo é legitimado por suas ações éticas? Não se confunde ética com convicções religiosas, com fé. Freud já alertava na carta a Einstein, em que apontava que a Liga das Nações deixara de fazer valer sua lei quando da ascensão do nazismo e, por isso, fracassara em sua função de impedir a guerra: “. . . que se crie uma instância desta índole”, ou seja, que existam instituições e organizações que impeçam os atos destrutivos, e “que se lhe outorguem o poder requerido”, isto é, que se façam respeitar na aplicação da lei. Ainda acrescenta que “de nada valeria uma sem a outra” (Freud, 1933/1990a, p. 191), em outras palavras, que a lei que constitui uma forma de organização social tem que ser legitimada por seus agentes e membros — pelos cidadãos e pelo Estado. O destino da Liga das Nações foi sua extinção, que deu lugar à Organização das Nações Unidas, em 24 de outubro de 1945, mas depois de efetivado o holocausto e o bombardeio com armas nucleares ao povo japonês, à revelia da Liga das Nações.

Há um tempo em que a ação ética tem que ocorrer para legitimar o fato. Isso ocorreu também quando da promulgação da Lei de Anistia, em 1985, que pactuou o final da ditadura civil-militar brasileira, mas também manteve a chamada “teoria dos dois demônios”, que vale igual para os dois lados e anistiou torturadores e torturados, em uma equivalência que até hoje gera consequências, pois mesmo que os torturadores tenham tido seus atos reconhecidos, citados e apontados pelos testemunhos dos afetados na Comissão Nacional da Verdade, não foram sequer indiciados[8] — não foi igual para quem exerceu a violência e para quem foi afetado. Esse pacto continua a gerar consequências, uma vez que o desmentido mantém legitimadas as falas negacionistas e a banalização do mal, como o “e daí?”, diante da pilha de mortos da peste atual, o  “eu não sou coveiro” e, ainda, “tortura sempre ocorreu”, como naturalização do horror.

É diante desse estado de coisas que ocorre uma análise ética: a ética não afirma uma ordem contra outra, ela abala a própria possibilidade da ordem (Gros, 2018); desfaz o desmentido, promove a autorização perante o acontecimento e inaugura uma ação ética que gera mudança. Aí está a legitimidade, que restitui a condição de desejo e de significância da ação em contrapartida a uma tomada de posição que aponta se uma posição é correta ou errada e se deve ser modificada. Transforma a banalização, o culto à ação obediente e à servidão ao gozo em uma ação de criação, potência do não, nova ação ética que promove diferença e convoca o outro a resistir — saída possível do masoquismo, do desamparo e da desolação. Em 1920, Freud afirmava que, a partir de uma estética de inspiração econômica, o homem buscava um ganho de prazer. No âmbito da cultura e da política, “a ação verdadeiramente justa não tem que se justificar, não tem que se multiplicar em discursos que a inscrevam numa legitimidade superior” (Gros, 2018, p. 180), pois, senão, passa a se constituir em uma ação ditatorial. Em 2020, a humanidade se transforma, como afirma Benjamin, em “um espetáculo para si mesma, vive sua própria destruição como um prazer estético. Eis a estetização da política, como a prática do fascismo” (1994, p. 196). Cenário do horror do nosso tempo.


Referências

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Birman, J. (2017). Arquivos do mal-estar e da resistência (2a ed.) Rio de Janeiro: Civilização Brasileira.

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Cromberg, R. U. (Org.). (2014). Sabina Spielrein: Uma pioneira da psicanálise. São Paulo: Livros da Matriz.

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Zizek, S. (2003). Bem-vindo ao deserto do real: Cinco ensaios sobre 11 de setembro e datas relacionadas. São Paulo: Boitempo.


[1] Psicanalista. Doutora pela Universidade Autônoma de Madrid. Membro Pleno da Sigmund Freud Associação Psicanalítica. Coordenadora do projeto SIG Intervenções Psicanalíticas, Coordenadora do projeto Clínicas do Testemunho/Comissão de Anistia/Ministério da Justiça 2013/2015 na Sigmund Freud Associação Psicanalítica e participante no segundo edital na Associação Psicanalítica de Porto Alegre/Instituto APPOA 2016/2017.

[2] A brincadeira, que acontecia quando da ausência da mãe, era realizada acompanhada de um som de “ooh”, quando desaparecia o carretel, e de “aah”, quando ele retornava. Com a observação de Freud e a ajuda da mãe, definem que “ooh” se referia a fort (em alemão, “partiu”) e que “aah” significava da (eis aí/aqui). Esses sons definiam para o bebê a partida e o retorno de sua mãe — daí conhecido como jogo do fort-da.

[3] Na carta em que responde a Einstein sobre a guerra (Freud 1933/1990a).

[4] Este tema foi desenvolvido em um trabalho chamado A Clínica do Testemunho. Experiência brasileira no processo de reparação psíquica, apresentado no VIII Congreso de la Asociación Psicoanalítica del Uruguay, em agosto de 2014, em Montevidéu.

[5] Projeto piloto desenvolvido no período de 2013 a 2015 na Sigmund Freud Associação Psicanalítica e, no segundo edital, 2016-2017, no Instituto APPOA/Associação Psicanalítica de Porto Alegre. O projeto foi interrompido por não haver novo edital depois do golpe/impeachment, em agosto de 2016, que afastou a presidenta eleita; posteriormente, a Comissão de Anistia foi “esvaziada” e transferida, no atual governo, para o Ministério da Mulher e Direitos Humanos.

[6] Falas extraídas do documentário 15 Filhos, de Maria Oliveira e Marta Nehring, de 1996.

[7] O Século do Ego é uma série documental, produzida por Adam Curtis em 2002, que mostra como Edward Bernays utilizou a teoria psicanalítica para influenciar empresas, governos e pessoas nos EUA.

[8] Vera Paiva, filha do deputado federal Rubens Paiva, morto por tortura no Destacamento de Operações de Informações (DOI) do I Exército do Rio de Janeiro no dia 21/22 de janeiro de 1971 e dado como desaparecido, buscou por anos pelo paradeiro do pai até que, passados 43 anos, conseguiu denúncia do Ministério Público contra cinco militares e agentes da repressão pela prática de tortura, sequestro, morte e ocultação de cadáver. Pela primeira vez no Brasil houve um pedido de denúncia e punição para responsáveis pelos crimes do regime ditatorial.

 

 

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