Javier Alejandro Lifschitz [1]
Raras vezes percorremos estes descaminhos que baixam ao abismo
A Divina Comédia, Inferno, Canto IX
A pandemia e o real do capitalismo
Resulta cada vez mais premente imaginar como será ou deveria ser o mundo pós-pandêmico, construir um projeto de futuro que começaria assim que possamos sair às ruas. Contudo, a própria ideia de um mundo pós-pandêmico pode ser uma mera ilusão. A pandemia veio para ficar e se tornou tão planetária quanto o capitalismo. Não se trata de uma guerra, nem de uma crise econômica, das quais se tenta sair com novos arranjos institucionais, como o tão lembrado Estado de bem-estar social depois da Segunda Guerra Mundial. A crise hoje é de outra natureza.
Trata-se de um real da natureza, invisível, molecular e imprevisível e que ameaça populações, práticas e saberes. As ciências biológicas e médicas estão lidando com isso, mas também estão a psicanálise e as ciências sociais, tentando circunscrever um fenômeno dos mais complexos.
Para começar, o vírus é um pedaço de proteína, um resto, a parte quebrada de uma cadeia molecular que se instala e infecta as células de nosso organismo provocando a morte. Se discute se o vírus seria ou não um ser vivo, como são as bactérias, porque no caso do primeiro precisam de uma célula para se alocar e se reproduzir, e essa célula é nosso próprio corpo. Há ainda cientistas que consideram que os vírus são algo nem vivo, nem morto, uma “infravida”, por ser limítrofe entre a vida e não vida, como um espectro (Coccia, 2020). Contudo, uma ameaça não visível e, por isso, ainda mais perturbadora. Um “inimigo” que não se vê e que é representado nas mídias como um minúsculo colorido que paira no ar.
Um vírus extremamente contagioso que provém do mundo animal e se transfere para os humanos, embora esse lado animal não apareça, como aconteceu com o surto do vírus de febre amarela em diversos estados do Brasil, durante os anos de 2017 e 2018, e que foi atribuído aos macacos. Embora os macacos das florestas que apareciam mortos fossem, na verdade, vítimas do mosquito que transmite a febre amarela, as populações começaram a exterminá-los por acharem que eles eram os responsáveis pela propagação da doença entre populações de regiões da mata. No estado do Rio de Janeiro, houve verdadeiros massacres de macacos. Segundo a Secretaria Municipal de Vigilância Sanitária na época: “Nunca vi uma matança tão grande contra uma espécie. Estamos todos indignados com o que estamos presenciando. De vez em quando nós temos casos de maus tratos a animais, mas nunca nessa proporção e nem com a crueldade das lesões que estamos vendo” (El País, 26 jan. 2018). Na pandemia atual não há essa presença animal.
Trata-se do Real, de um resto, que tem efeitos profundos sobre os sujeitos, como observam psicanalistas. Só para indicar um direcionamento, digamos que o real é aquilo que nos faz desabar, o que nos deixa sem palavras, o que nos faz ficar sem chão porque não está sujeito a lei nenhuma, como agora o vírus mutante. O real como uma ideia limite, que implica que no mundo dos viventes sempre há algo que escapa à ordem simbólica.
Seguindo a intervenção de Alain Miller (2012) sobre “o real no século XXI”, podemos dizer que estamos perante um real que marca época, tal como aconteceu em outros momentos paradigmáticos. Miller observa que na Antiguidade o real era simbolizado como natureza, aparecia como força implacável, como manifestação mais elevada da ordem. O real da natureza sempre retorna ao mesmo lugar e as evidências dessa ordem eram o pêndulo das estações e os movimentos dos astros. O aparecimento no mesmo lugar, o mesmo retornar e por isso a natureza acabava tendo a função de garantia da ordem simbólica, a tal ponto que a ordem humana, para ser virtuosa, devia reproduzir a ordem natural.
A partir do binômio capitalismo-ciência teria surgido um desejo do tocar o real, sob a forma de fazer a natureza obedecer, mobilizar sua potência, ainda à custa da extinção de espécies e do próprio ecossistema. Nesse desejo capital, o real teria se desprendido, se emancipado da natureza. Um resto de estrutura, desordenado, um real sem lei que testemunha essa separação com a natureza e que se torna cada vez mais insuportável, uma vez perdida a ilusão de recuperar a ordem perdida. O autor percebia esse real do século XXI sobretudo pelas mutações da sexualidade e nas transformações a nível do genoma, que vinham alterando o que parecia ser o quadro imutável da reprodução.
Portanto, dada esta fase do capitalismo, em que o real se separou da natureza, seria ilusório pensar em cenários pós-pandêmicos.
A pandemia passou a ser o real do capitalismo e isso se manifesta na introdução de novas lógicas que não cessam de se inscrever. Como observa Miquel Bassols (2020), a pandemia vem introduzindo certas topologias no cotidiano das sociedades capitalistas que indicam que “o real já não é mais o que era”.
Uma experiência sem precedentes do real na Humanidade[2] que se expressa em registros. Primeiramente, a detenção do tempo. A pandemia fez parar, de forma inédita, a aceleração que o capitalismo vinha imprimindo às sociedades. E isso aconteceu em escala planetária. Repentinamente todo o mundo parou, a aceleração se inverteu e o mandato do momento passou a ser: parem, não viajem, desacelerem, fiquem em casa, não saiam. Uma detenção em escala planetária, radical e inédita.
Além disso, a reclusão no espaço, o distanciamento social. A experiência do confinamento. O real da solidão do ser falante, esteja ou não com companhia. De um tempo subjetivo, estranhamente familiar, e o pânico. Um pânico também coletivo pela possibilidade de contágio e pelo inevitável estouro do sistema de saúde que introduz a necessidade de um tempo lógico: “Não fiquem doentes de uma só vez, por favor”.
A pandemia é um fenômeno inextrincavelmente cultural, político e econômico e suscita narrativas que tentam dar um sentido, seja pela via da recusa ou pela urgência em inscrevê-lo em uma ordem simbólica. A seguir, vamos nos referir particularmente a uma dessas narrativas do campo acadêmico e filosófico, que relacionam a pandemia à biopolítica e são muitos os autores que caberia citar no campo intelectual europeu. Neste texto, discutiremos se o avanço de biopolíticas está inevitavelmente associado ao controle autoritário sobre a vida de sujeitos e comunidades.
Biopolítica e destino
A biopolítica é um importante paradigma sobre o poder, que remete à obra de Michel Foucault. Trata-se de uma teoria e de um método de indagação sobre a dinâmica das sociedades que contempla, com especial atenção, a emergência de tecnologias de controle e dispositivos e formas de normalização disciplinar que se exercem sobre os corpos (Foucault, 2008). Interessante, nesse sentido, revisitar a análise que Foucault fez da peste, no fim da Idade Média e durante os séculos XVI e XVII. Dentre outros aspectos, o autor mostra a implantação de uma biopolítica da quarentena em cidades europeias, com regulamentações estabelecendo quando as pessoas podiam sair de suas casas, proibindo certos tipos de contato entre elas, obrigando a população a se apresentar perante as autoridades ou a receber inspetores. Resulta instigante ver como Foucault identifica todo um sistema de normalização disciplinar, incidindo sobre territórios e a circulação de pessoas nas cidades em que a epidemia se espalha e também a gestação de novos saberes médicos e jurídicos em torno das possibilidades de contágio e reclusão.
O mais importante que aprendemos com Foucault, de acordo com Paul Preciado (2020), é que o corpo é objeto central de toda política e a atual pandemia traz isso à tona. Entretanto, para Preciado já não se trataria, como na visão de Foucault, da implementação de técnicas moleculares, e sim de poderes especializados que agora penetram nos corpos a partir de técnicas endocorporais e de biovigilância.
As epidemias convocam o estado de excepção que por sua inflexível imposição de medidas extremas são a ocasião de uma reconfiguração a grande escala das técnicas do corpo e das tecnologias de poder. O domicílio, agora como centro de produção, consumo e controle biopolítico (Preciado, 2020: 164).
Na mesma direção, Byung- Chul Han (2020), em textos sobre a forma de intervenção do Estado chinês durante a pandemia, considera que se instituiu um “estado de vigilância social” sendo aceito como modelo para outros países. Um modelo em que o Estado, fazendo uso de novíssimas tecnologias digitais e de inteligência artificial exerce um poder molecular, nos termos de Foucault. Também identifica potenciais estados de exceção, pelo uso de dados de aparelhos celulares de milhões de cidadãos e de toda uma infraestrutura de redes que registra a geolocalização de cada indivíduo.
Esse modelo chinês, em que se combinaram saberes e técnicas de virologistas e epidemiologistas com saberes de especialistas em informática e macrodados, teria se mostrado eficaz para conter a epidemia. Contudo, ele considera que esse tratamento de Big Data sobre o comportamento de populações abre fortes possiblidades de controle e de autoritarismo que iriam ao encontro da tradição liberal europeia da liberdade individual.
Como todo discurso, esse também tem seu fantasma neste caso de que o “Estado policial digital ao estilo chinês” penetre, também no Ocidente. A possibilidade de uma biopolítica autoritária na Europa, que permaneça após a pandemia, pautada na vigilância digital como situação normal:
O Estado sabe, portanto, onde estou, com quem me encontro, o que faço, o que procuro, em que penso, o que como, o que compro, aonde me dirijo. É possível que no futuro o Estado controle também a temperatura corporal, o peso, o nível de açúcar no sangue etc. Uma biopolítica digital (Byung-Chul Han, 2020:102).
A articulação entre biopolítica e estado de exceção também é frequente nos textos que lemos. Em um artigo recente de Bruno Latour, por exemplo, em que se coloca a interessante questão de a pandemia ser efeito de uma mutação ecológica em curso,
a biopolítica da quarentena praticamente é tratada como uma questão de controle policial:
A originalidade da situação atual [a pandemia], me parece, é que, ao ficar preso em casa enquanto lá fora há apenas a extensão dos poderes policiais e o barulho das ambulâncias, nós estamos encenando coletivamente uma forma caricaturizada da figura da biopolítica que parece ter vindo direto de uma palestra de Michel Foucault (Latour, 2020, s/p).
Já na visão de Agamben, a pandemia teria instaurado na Europa um estado de exceção, que seria vivido como uma situação normal. Um “colapso ético e político”, uma vez que o Poder Executivo passou a emitir decretos de urgência que abolem o princípio de separação de poderes e certas normas constitucionais, entre as quais considera muito grave o fato da quarentena “limitar nossa liberdade de movimento num grau que nunca havia acontecido antes na história do país [Itália]” (Agamben, 2020c).
O autor estima que essa política de exceção poderá se estender no tempo após a pandemia. Chega inclusive a fazer uma homologia entre o atual primeiro ministro da Itália com o Führer, por causa da prerrogativa de ditar decretos com valor de lei. Também considera que o distanciamento social poderia se impor como princípio de comportamento e de organização da sociedade, abalando fundamentos constitucionais e morais. Dessa maneira, prevê sociedades que teriam sacrificado a liberdade pela segurança, se obrigando a viver em situação de sobrevida e precariedade moral.
As pessoas se acostumaram tanto a viver nas condições de crise e emergência perpétuas que parecem nem mesmo notar que suas vidas foram reduzidas a uma condição puramente biológica e perderam todas suas dimensões, não só as sociais e políticas, mas até as humanas e afetivas. Uma sociedade que vive em um estado de emergência perpétuo não pode ser mais uma sociedade livre (Agamben, 2020b, s/p).
Não valerá a pena sacrificar a liberdade em nome dos princípios da vida?, se pergunta. E responde que o dilema, “renunciar a um bem para salvar um bem ainda maior”, além de ter sido utilizado pelos nazistas nos tribunais de Nuremberg, seria falso e contraditório também na situação atual.
Portanto, esses autores compartilham a visão de que a ação do Estado perante a pandemia é uma vontade de poder que pode ser ameaçadora em diferentes níveis e essa reflexão é necessária considerando a inédita e espinhosa situação da pandemia no mundo. Também é importante considerar que toda catástrofe mobiliza fantasmas e por trás desses discursos sobre a quarentena não se pode deixar de ver o semblante do fascismo e do nazismo que assolou a Europa. Não há, nesses textos, outras referências além da Europa, como não fazem muitas diferenciações quanto aos regimes políticos e governos ou disputas de discursos sobre o sentido da pandemia. No Brasil, quem defende o fim da quarentena é a extrema-direita, na figura do presidente, que por motivos diferentes aos de Agamben pressiona para que o povo volte ao trabalho. Ou seja, menos quarentena e mais mercado, custe o que custar.
As políticas dos governos fazem diferença e nem toda biopolítica vai necessariamente acompanhada do estado de controle e de exceção. De fato, estão em curso biopolíticas de extermínio, mas também biopolíticas de proteção à vida dos cidadãos, e no Brasil, mais que com o excesso, devemos nos preocupar com a falta de biopolíticas que protejam a saúde da população e possam ser efetivamente universalizadas. As biopolíticas não são armas de fio único.
Biopolíticas e democracia
Tais posicionamentos críticos do campo da esquerda de países europeus, com relação à ação do Estado e a biopolítica durante a pandemia, acabaram ganhando força também na América Latina. Com frequência lemos textos de cientistas sociais alertando sobre a pandemia e a conformação de um Estado de controle com acesso ao Big Data dos cidadãos e monitoramentos digitais. Por isso, nos perguntamos até que ponto esses posicionamentos sobre a biopolítica não são uma armadilha teórica na hora de discutir nossa própria situação da pandemia na América Latina. Quais seriam então as diferenças com a Europa?
A primeira diz respeito à vigência dos estados de exceção. Embora na Europa tenham ganhado força alguns partidos e tendências de ultradireita, não se observa fortes reações às medidas de quarentena e às ações que os governos vêm tomando. Ainda que Agamben alerte para o fato de que os aspectos normativos do direito possam ser eliminados e se instaurem estados de exceção, é evidente que se trata de uma possibilidade muito remota.
Entretanto, na América Latina os estados de exceção aconteceram de formas recorrentes e sinistras. Os crimes de lesa humanidade e os genocídios perpetrados pelas ditaduras militares no Brasil, Argentina, Chile e Uruguai são a evidência disso. Essas ditaduras exerceram de tal forma um poder sobre os corpos que nenhuma biopolítica autoritária poderia atingir. Tortura sobre os corpos, assassinatos, ameaças, desaparições e delitos de lesa humanidade acometidos por máximos representantes do Estado.
A atitude do presidente Bolsonaro com relação à pandemia é uma continuidade a essas políticas de genocídio, ainda que de outra maneira. O genocídio neste caso é por omissão, por não assumir a soberania de políticas sanitárias de proteção à população minimizando a gravidade da pandemia e incitando a abandonar a quarentena. De fato, há uma denúncia penal, por parte da Associação Brasileira de Juristas pela Democracia (ABJD), contra o presidente Jair Bolsonaro junto ao Tribunal Penal Internacional por ter cometido, perante a pandemia, crime contra a humanidade. Conforme a denúncia:
A sequência de fatos serve para demonstrar que o Brasil possui, no atual momento, um chefe de governo e de Estado cujas atitudes são total e absolutamente irresponsáveis e que, por ação ou omissão, colocam a vida da população em risco, cometendo crimes que serão abaixo descritos, merecendo a atuação do Tribunal Penal Internacional para a proteção da vida de milhares de pessoas. Há projeções estatísticas que demonstram que haverá no Brasil mais de 1 milhão de mortes, caso as recomendações da OMS não sejam atendidas (ABJD, 2020).
Além do deboche e do negacionismo doentio instituído como discurso político, o núcleo do discurso do presidente é que o Estado deve deixar que as forças de mercado voltem a operar rapidamente, dando continuidade às mudanças estruturais neoliberais que estão se realizando no Brasil. Nisso, as federações empresariais, como CNI, FIESP, FIRJAN, compactuam com o presidente. Que “economia” é essa que não retrocede nem quando a vida humana corre perigo?
Portanto, não é pelo excesso de biopolíticas que nós deveríamos nos preocupar, e sim pela falta delas. O que o fascismo neoliberal defende é que o Estado não exerça o dever constitucional de proteger a vida dos cidadãos e de cuidados da população. Que não haja testes, que não se contabilize os afetados pela pandemia; questionar dados de organizações internacionais e abrir covas em lugares invisíveis (Safatle, 2020). Assim, no lugar de biopolíticas democráticas, há o abandono de parte da população que mais precisa e isso não se chama Estado suicidário, e sim genocídio.
Uma segunda diferença são os efeitos das políticas neoliberais triunfantes em escala mundial. Nos países da Europa houve, ao longo desses anos, cortes nos gastos públicos que afetaram os sistemas de saúde, e isso se mostra dramaticamente na Itália, Espanha, Inglaterra e França, onde ficou evidente que as mortes têm muito a ver com a crise do sistema público de saúde promovido pelo neoliberalismo. Tanto é assim, que há na Europa certo consenso de que o Estado tem que voltar a atuar de uma maneira urgente e abrangente.
Na América Latina, o neoliberalismo levou o serviço público a um quadro realmente degradante. Na Argentina, o ex-presidente Mauricio Macri praticamente desmontou o sistema de saúde pública e o mesmo vem acontecendo no Brasil desde o golpe de Michel Temer. Para termos uma ideia dessa crise dos serviços públicos no Brasil, apenas na área de saúde: há 20 atrás, o déficit do sistema de saúde era de US$ 3 bilhões, e antes da pandemia já superava os US$ 15 bilhões (O Globo, 12 abr. 2020).
Em suma, a destruição da saúde pública na América Latina foi descomunal, e esse quadro evidencia a atual restrição em ações biopolíticas básicas, como a aplicação massiva de testes, a distribuição universal de máscaras e equipamentos de proteção, e a medição da temperatura corporal em grande escala. Como disse a ex-presidenta Dilma Rousseff, o Estado brasileiro precisa hoje de quatro medidas urgentes: preservar uma política de quarentena, testes em grande escala, uma reorientação da produção para equipamentos e serviços de saúde e assegurar uma renda mínima universal para a população (Diretório Nacional do PT, 2020).
Biopolíticas e abismo
“A intervenção do Estado é a consequência lógica do vírus”, disse Badiou (2020). Porém, a intervenção pública pode seguir caminhos diferentes, e o vínculo entre biopolítica e autoritarismo sem dúvida também está muito presente na região. Segundo um informe da RESLAC (2020), em países da América Latina há muitas denúncias sobre casos de autoritarismo de Estado durante a pandemia. No Peru, o Estado decretou medidas legais que permitem que as forças de segurança cometam eventuais ações abusivas sobre a população – a denominada Lei de proteção policial, que limita as atribuições dos juízes para ditar a detenção de policiais no uso irregular de armas no marco da vigilância à pandemia. Há também situações de biopolítica autoritária na Colômbia, Guatemala e no Equador, com políticas de quarentena que chegam a ser “repressivas e ameaçantes”. Na Colômbia, a Procuradoria Geral da Nação consagrou com caráter de urgência que os cadáveres de pessoas não identificadas, que permanecem nos necrotérios, sejam cremados ainda sem confirmação da causa da morte, sem sequer prosseguir com a identificação. Também há muitos registros de ações autoritárias ocorridas no Brasil durante a pandemia.
Outro aspecto é que o Estado também retorna na América Latina e, como observa Álvaro García Linera (2020), é difícil saber quanto vai durar esse retorno. Ele também se mostra cético quanto ao retorno a políticas keynesianas ou desenvolvimentistas clássicas, porque segundo sua visão as interdependências técnico-econômicas já são outras. Estima, sim, que seja estratégico ir construindo, desde agora, um Estado que teria que combinar ações como proteção social ampla (que inclua assalariados, não assalariados e trabalhadores autônomos), políticas de democratização da propriedade, fiscalização radical dos fluxos financeiros e imediatas ações de proteção ao meio ambiente. Ou seja, na direção oposta ao atual ministro da Economia no Brasil, Paulo Guedes, que continua defendendo medidas de corte neoliberal de flexibilização e precarização do trabalho.
Existem fortes diferenças entre países latino-americanos. A Argentina está entrando em um período de governo progressista, com uma intervenção do Estado abrangente e democrática de proteção cidadã, e acreditamos que esse também teria sido o caminho do candidato do Partido dos Trabalhadores, Fernando Haddad, caso tivesse ganhado nas eleições de 2018. Mas a realidade foi outra e hoje temos a situação de um Estado esquizoide, como disse o sociólogo Michel Misse em uma entrevista na qual participamos (Aquele abraço,2020): o presidente com um discurso negacionista, justificando a volta ao mercado e alguns governadores e prefeitos tentando implementar protocolos da OMS (Organização Mundial da Saúde), quanto à permanência da quarentena e à adoção de medidas urgentes para evitar mortes em massa.
O real do capitalismo produzirá políticas e torna-se urgente que os Estados adotem biopolíticas de viés democrático, que considerem a extrema desigualdade nas condições de vida dos cidadãos e que não claudiquem perante as pressões do capital e dos militares, que na América Latina costumam vir juntos, “porque capitalista raciocina em termos de classe e não de população”.
Referências Bibliográficas
ABJD – Associação de Juristas pela democracia, Complaint, before the international criminal court, Rome statute, art. 15.1 and 53, São Paulo, 2 abr. 2020. https://static.congressoemfoco.uol.com.br/2020/04/TPI_ABJD_020420.pdf. Acesso em: 15 abr. 2020.
AQUELE ABRAÇO, Pandemia e Sociedade, Entrevista com o sociólogo Michel Misse, TV Adunirio, Live 14 abr. 2020. Disponível em: https://youtu.be/OcELPcJys4A. Acesso em: 14 abr. 2020.
AGAMBEN, Giorgio. La invención de una epidemia, In: Sopa de Wuhan, Pensamiento contemporaneo em tempos de pandemias, ASPO (Aislamiento Social Preventivo y Obligatorio), março 2020a. Disponível em: https://dialektika.org/ Sopa-de-Wuhan-ASPO.pdf. Acesso em: 20 mar. 2020.
______; Chiarimenti. Quodlibet, Roma, mar. 2020b. quodlibet.it. Acesso em: 20 abr. 2020.
______; Una domanda. Quodlibet, Roma, abr. 2020c. quodlibet.it. Acesso em: 20 abr. 2020.
BADIOU, Alain. Sobre la situación epidémica, In: Sopa de Wuhan, Pensamiento contemporaneo em tempos de pandemias, ASPO (Aislamiento Social Preventivo y Obligatorio), março 2020. Disponível em: https://dialektika.org/ Sopa-de-Wuhan-ASPO.pdf. Acesso em: 20 mar. 2020.
BASSOLS, Miquel. A lei da natureza e o real sem lei, Escola Brasileira de Psicanalise, Correio Express, 26 mar. 2020. Disponível em: https://www.ebp.org.br/correio_express/2020/03/26/a-lei-da-natureza-e-o-real-sem-lei/. Acesso em: 24 abr. 2020.
BYUNG-CHUL HAN. La emergencia viral y el mundo de mañana, In: Sopa de Wuhan, Pensamiento contemporaneo em tempos de pandemias, ASPO (Aislamiento Social Preventivo y Obligatorio), março 2020. Disponível em: https://dialektika.org/ Sopa-de-Wuhan-ASPO.pdf. Acesso em: 20 mar. 2020.
COCCIA, Emanuele. O virús é uma força anárquica de metamorfose, In: n-1 edições, Textos, São Paulo, 2020. Disponível em: https://n-1edicoes.org/textos-1. Último acesso em: 15 abr. 2020.
DIRETÓRIO NACIONAL DO PT, Reunião do Diretório Nacional do PT: a situação do Brasil, TV PT, 9 de abr. de 2020. Disponível em: https://youtu.be/j6c-Z6voPoI. Acesso em: 9 abr. 2020.
EL PAÍS, “Febre amarela desata caça bárbara contra macacos no Rio”, 26 jan. 2018. Disponível em: https://brasil.elpais.com/brasil/2018/01/25/politica/1516892592_161900.html Acesso em: 20 abr. 2020.
FOUCAULT, Michel. Segurança, território e população. São Paulo: Martins Fontes, 2008.
GARCÍA LINERA, Álvaro. Panico Global y horizonte aleatório, Universidad Nacional de San Martín, Argentina, 30 mar. 2020. Disponível em: https://www.facebook.com/notes/%C3%A1lvaro-garc%C3%ADa-linera/p%C3%A1nico-global-y-horizonte-aleatorio/1063828610661510/. Acesso em: 18 abr. 2020.
LATOUR, Bruno. A crise sanitária incentiva a nos prepararmos para as mudanças climáticas. Publicado originalmente no jornal Le Monde, 25 mar. 2020. Disponível em: http://agbcampinas.com.br/site/2020/bruno-latour-a-crise-sanitaria-incentiva-a-nos-prepararmos-para-as-mudancas-climaticas/. Acesso em: 30 mar. 2020.
LAZZARATO, Maurizio. É o capitalismo estúpido, In: n-1 edições, Textos, São Paulo. Disponível em: https://n-1edicoes.org/textos-1. Acesso em: 15 abr. 2020.
MILLER, Jacques-Alain, O real no século XXI, Apresentação no IX Congresso da Associação Mundial de Psicanálise, Buenos Aires, 23 e 27 de abril de 2012. Disponível em: https://www.wapol.org/pt/articulos/Template.asp?intTipoPagina=4&intPublicacion=38&intEdicion=13&intIdiomaPublicacion=9&intArticulo=2493&intIdiomaArticulo=9. Acesso em: 13 mar. 202
O GLOBO. “Não podemos ter um SUS com tamanha dependência, diz pesquisador da Fiocruz em meio à crise do coronavirus”. Entrevista com o pesquisador da Fiocruz Carlos Gadelha, O Globo, 12 abr. 2020.
PRECIADO, Paul. Aprendiendo del virus, In: Sopa de Wuhan, Pensamiento contemporaneo em tempos de pandemias, ASPO (Aislamiento Social Preventivo y Obligatorio), 2020. Disponível em: https://dialektika.org/ Sopa-de-Wuhan-ASPO.pdf. Acesso em: 20 mar. 2020.
RESLAC – Rede de Sítios de Memória Latino-americanos e Caribeños, La Pandemia en América Latina y el Caribe. Disponível em: http://sitiosdememoria.org/en/la-pandemia-en-america-latina-y-el-caribe_en/. Acesso em: 18 fev. 2020.
SAFATLE, Vladimir. Bem-vindo ao Estado suicidário. Disponível em: https://jornalggn.com.br/blog/doney/bem-vindo-ao-estado-suicidario-por-vladimir-safatle-n-1-edicoes/ Acesso em: 18 fev. 2020
*Texto publicado no Livro “Pandemias e Pandemônio no Brasil, Augusto Brandão, C. e Dultra dos Santos, R. (org.), Ed. Tirant lo blanch, Instituto defensa da classe trabalhadora, Rio de Janeiro, 2020.
[1] Sociólogo, professor da Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro. Membro da Letra Freudiana do Rio de Janeiro.
[2] Que Jacques Lacan definiu como “o sujeito do individual”.